quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Fado significa destino







OS FATOS DO FADO - Se os fatos do fado são incontornáveis, o modo de recebê-los, nossa atitude e comportamento não dependem daqueles, mas de nossa sabedoria e virtude. Aí reside precisamente a liberdade humana; não no que se padece ou se goza, mas no modo como se age e reage ao sofrimento e ao gozo, enfim ao que cai fatidicamente sobre nós. A felicidade humana reside no exercício ativo da liberdade e da razão. Ser arrastado como um escravo ou seguir livre conforme o próprio entendimento que entra em acordo com a razão cósmica universal, amor fati. Este acordo de nossa razão particular, de nossas atitudes quotidianas, com a grande razão que move o destino do mundo é o que o homem estoico também chama de conciliação, que ele buscará desde em suas ações privadas até em seus mais amplos propósitos de ativismo cosmopolita. A compreensão desta distinção entre a recepção dos fatos e a atitude que com eles se reconcilia desdobra-se a partir de uma teoria do conhecimento e das capacidades cognitivas da alma humana.
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(Trecho do livro "Arqueologia dos Prazeres", de Fernando Santoro)

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segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O CARNAVAL DE XENÓFANES (Fernando Santoro)



Com algumas obras de juventude, como A Origem da Tragédia (1872) e A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos (1873), Nietzsche abriu os olhos da filosofia para uma experiência de sabedoria que ele mesmo denominaria de ‘Dionisíaca’. A sua visada era sem sombra de dúvida inspirada na poesia dramática, não apenas a tragédia mas também a comédia antiga. Com a visada artística e moral da tragédia clássica, ele ganhava pesos para avaliar a existência e medir as ideias dos próprios filósofos, assim como nas Rãs, Aristófanes põe Dioniso a comparar o peso artístico de Eurípides e de Ésquilo para saber quem merece o trono da dramaturgia. Todavia, com um olhar ainda bastante influenciado pela filologia e filosofia do seu tempo, Nietzsche esquematiza na sua análise da constituição da tragédia uma dicotomia entre dois polos em tensão: o dionisíaco e o apolíneo; mesmo que, para ele, se inverta a valoração tradicional da história das ciências e a racionalidade apolínea não seja vista como o ápice da civilização grega, mas sim o sintoma da sua decadência. Para Nietzsche, as filosofias de Sócrates e Platão são a expressão de um declínio da força e do caráter grego, os quais eram nítidos e pujantes em pensadores como Anaximandro, Heráclito e Empédocles. Ele avalia a cultura e a civilização do mesmo modo que Aristófanes, para quem o arcaico Ésquilo vence em arte um Eurípides mais dialético e racional. Giorgio Colli, na Origem da Filosofia (1975), levou adiante o projeto Nietzschiano de desconstrução dos ideais ascéticos da ciência e da filosofia, ao mesmo tempo em que o criticava no detalhe, mostrando o quanto a dimensão delirante da sabedoria não era prerrogativa exclusiva de Dioniso e sua corte de sábios e poetas, mas também vigorava nas artes luzentes de Apolo, como na vidência e revelação em transe dos mensageiros oraculares. Heráclito e Sócrates não se opõem para Colli, mas são dois modelos de filósofos apolíneos por excelência, portadores de uma racionalidade não apenas lúcida mas também ambígua, enigmática e paradoxal. 
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O final do Séc. XX foi muito receptivo à ideia de uma sabedoria mais profunda, para a qual a racionalidade e seus valores maiores como a identidade, a não-contradição, a universalidade, a substancialidade, a causalidade encontrariam não somente seus limites mas também sua superação, desconstrução e mesmo destruição. Todavia, a expressão desta sabedoria mais profunda sempre pareceu a reboque da mesma racionalidade que ela negava: o dionisíaco se reconhecendo pelo não racional, pelo não identitário, pelo não substancial, pelo não universal. Parece reconhecer-se sempre negativamente, como a fronteira e o limite da própria filosofia e das ciências positivas. Todavia, a presença de Dioniso e uma sabedoria em seu em torno é notoriamente anterior, e para Nietzsche, mais pujante, senão este não teria identificado como um momento histórico de decadência o que seria a reação ou o esvaziamento desta sabedoria. Em sendo historicamente anterior, é preocupante que nos limitemos quase sempre a compreendê-la não a partir dela mesma, mas a partir do que a sucede e a oblitera, como diz Nietzsche, ou seja, a partir de dicotomias metafísicas, tais como a oposição racional x irracional. Tendemos a ver assim as expressões dionisíacas como limite e negação da racionalidade metafísica e não como o fundo e o terreno mesmo aonde esta vem a Esta limitação do nosso olhar não é uma imposição histórica incontornável. Não estamos condenados ao passado do passado. O passado também abre futuros, e o futuro do passado, talvez passe por reapropriações e releituras do que sempre esteve aí presente, à nossa disposição. Não se deve negar, no caso que ora nos interessa, o fato de que há efetivamente na literatura antiga referências ao que podemos considerar como uma sabedoria dionisíaca, sem que esta sabedoria se apresente apenas como negação de lucidez e racionalidade. Há referências a partir das quais acreditamos que é possível uma caracterização efetivamente positiva e não apenas feita a partir das sombras ou dos contornos da racionalidade metafísica que constituiu o mundo das ciências e das técnicas ocidentais. Sombras e limites que a crise contemporânea dos valores realmente é bem mais capaz de promover, e que não se configuram criativamente pujantes como teria sido aquela sabedoria capaz de engendrar uma expressão sapiencial e artística, de teor ao mesmo tempo sagrado e político envolvendo avassaladoramente toda a comunidade, como foi a tragédia clássica encenada nos festivais dionisíacos. 
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A história da civilização não tem necessariamente o curso linear dos romances e dos manuais, e forças recalcadas da experiência do saber, forças originárias de pensamento, às vezes, podem aparecer onde menos se espera. Vamos explorar uma tal perspectiva, buscando em um fenômeno explicitamente dionisíaco um modo original de saber e pensar, que assim também chamaremos de ‘pensar dionisíaco’. Este fenômeno dionisíaco por excelência é o carnaval. Como nasci carioca, o carnaval para mim é coisa muito séria, e vivida com intensidade não apenas nos quatro dias do calendário oficial, mas na experiência cotidiana do ciclo e da renovação, o ano inteiro de Dioniso. Mas não será o carnaval carioca, meu ponto de partida. O ponto de partida desta especulação é um texto de um poeta e filósofo grego do século sexto antes de Cristo: Xenófanes de Colofão. A história da filosofia tradicional, influenciada pelo comentário de Platão que o classificou junto aos Eleatas1, considera Xenófanes um precursor do monoteísmo no ocidente. Eu não o vejo assim, tanto por razões de ordem histórica quanto pelo que considero mais importante: a própria análise filológica e filosófica dos textos. Sem dúvida, boa parte do que nos foi transmitido desse rapsodo, ao mesmo tempo sábio e poeta, são críticas ao modo como os homens entendem e cultuam os deuses. Mas de crítico da religiosidade mundana a refutador do paganismo, como querem os apologetas cristãos, a distância é grande. A Xenófanes se junta Heráclito, e outros sábios do sexto século, na condenação do antropomorfismo, e ambos citam explicitamente Homero como alvo de suas críticas. Heráclito de Éfeso quer escurraçar estes poetas: Este Homero devia ser expulso dos concursos e bastonado, este Arquíloco também Xenófanes de Colofão não modera os impropérios: Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses tudo  quanto entre os homens é vergonhoso e censurável, roubos, adultérios e mentiras recíprocas. Mas a crítica ao antropomorfismo não os faz menos pagãos e menos devotos de certos deuses do panteão tradicional grego, como Apolo e Dioniso, entre outros, que são referidos normalmente de modo indireto e ambíguo, como no fragmento 17 de Xenófanes, em que não se sabe o fim da referência descritiva, se ela comporta ou não uma crítica, nem o seu teor:
 ἑστᾶσιν δ᾿ ἐλάτης <βάκχοι>4 πυκινὸν περὶ δῶμα. 
 Fincam  de pinho em torno da casa firme. 
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 De toda forma, Xenófanes refere-se aos deuses no plural, como no fragmento 18: 
 οὔτοι ἀπ᾿ ἀρχῆς πάντα θεοὶ θνητοῖσ᾿ ὑπέδειξαν6, ἀλλὰ χρόνωι ζητοῦντες ἐφευρίσκουσιν ἄμεινον. 
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Os deuses de início não mostram tudo aos mortais, mas os que investigam, com o tempo, descobrem o melhor. E mesmo quando vai falar de um deus que se sobrepõe a tudo, este deus está também acima de outros deuses, de modo que não é único: Um único deus, entre deuses e homens o maior, em nada semelhante aos mortais nem no corpo nem no pensamento.7 De toda forma, o dionisismo que queremos evocar em Xenófanes não é religioso, mas diz respeito a um modo de pensar. Este modo está exemplarmente posto no fragmento 15, que vamos agora ler e em seguida analisar :  
ὑπέδειξαν Flor. 29, 41 : παρέδειξαν Ecl. I,8,2 1 ἀλλ᾿ εἰ χεῖρας ἔχον βόες <ἵπποι τ᾿>8 ἠὲ λέοντες ἢ γράψαι χείρεσσι καὶ ἔργα τελεῖν ἅπερ ἄνδρες, ἵπποι μέν θ᾿ ἵπποισι βόες δέ τε βουσὶν ὁμοίας καί <κε>9 θεῶν ἰδέας ἔγραφον καὶ σώματ᾿ ἐποίουν 5 τοιαῦθ᾿ οἷόν περ καὐτοὶ δέμας εἶχον <ἕκαστοι>10. 
Clemente de Alexandria, Miscelâneas V, 109, 3 (seq. B 14)  
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Mas se tivessem mãos os bois, 11 e os leões, quando pintassem com as mãos e compusessem obras como os homens, cavalos como cavalos, bois semelhantes aos bois pintariam a forma dos deuses e fariam corpos 5 tais como fosse o próprio aspecto 12. A crítica ao antropomorfismo dos deuses é clara. Todavia, mesmo se, tal como acontece na República de Platão, Xenófanes critica Homero e Hesíodo porque estes retratam os deuses realizando atos indignos da divindade, esta crítica não se faz ao modo de uma demonstração como faz Sócrates, que argumenta que como os Deuses devem ser sumamente felizes e bons, tais retratos ignominiosos só podem ser falsos. Xenófanes não chega a professar nenhum tipo de conhecimento dos deuses, conhecimento que ele mesmo suspende, no fragmento 34: E ao certo nenhum homem sabe coisa alguma nem há de saber algo sobre os deuses nem sobre o todo de que falo; pois se, na melhor das hipóteses, ocorresse-lhe dizer algo perfeito, ele mesmo, no entanto, não saberia; opinião é o que se cria sobre tudo. 10 <ἕκαστοι> add. Herwerden 13 «περὶ πάντων» : “acerca de tudo” ou “acerca de todas as coisas” pode ter um sentido distributivo: “cada uma das coisas de que eu falo” ou integrante: “o que eu falo sobre a totalidade do universo”. As duas acepções são possíveis e Xenófanes parece usar ambas. A crítica de Xenófanes ao antropomorfismo não é uma crítica ao falso conceito dos deuses, mas endereça-se ao homem e seu mau hábito de ver o mesmo em tudo, de não se abrir ao conhecimento, à experiência da alteridade, sobretudo à alteridade radical que os deuses representam em relação aos próprios homens. Mas para falar do homem e do seu modo de ver o outro, Xenófanes não fala do que o homem é ou não é, sua essência e seus predicados. Muito menos vai Xenófanes falar do que não sabe, isto é, de como são os deuses ou como devem ser. O pensador não tem um discurso categorial sobre determinado sujeito ou sobre determinado objeto de conhecimento. Xenófanes, por outra via não menos racional e reflexiva, nos põe diante de uma cena absurda : leões pintando leões, cavalos cantando hinos a cavalos, bois adorando estátuas de bois. Absurda e cômica cena em que os animais imitam o modo de ser dos homens quando estes retratam os deuses como a si mesmos. O esquema retórico está todo fundado na relação mimética. Mímese que acontece em dois níveis : primeiro e explícito, o modo como cada bicho ou cada espécie representa seus deuses como eles mesmos; segundo e implícito nível, quem se imita a si mesmo ao representar o sagrado somos nós os homens. Resulta que o absurdo e rídiculo das imagens dos bichos faz com que reparemos naquilo que fazemos sem pensar, e que no fim das contas não é menos ridículo e absurdo. Homens que pintam figuras de homens e mulheres, ou que esculpem figuras de mulheres e homens, e que fazem hinos e preces como se se dirigissem a outros homens ou mulheres, mas que por serem considerados imortais e mais poderosos chamam de deuses e deusas. 
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Esse esquema revelador da ignorância e estupidez dos homens é recorrente na poesia e sabedoria satírica de Xenófanes, tal como aparece também no Os etíopes são negros de nariz chato os trácios de olhos verdes e ruivos.14 E aparece também em um dos fragmentos conservados do comediógrafo Epicarmo: θαυμαστὸν οὐδὲν ἁμὲ ταῦθ' οὕτω λέγειν καὶ ἁνδάνειν αὐτοῖσιν αὐτοὺς καὶ δοκεῖν καλὼς πεφύκειν· καὶ γὰρ ἁ κύων κυνὶ 14 O dístico é uma reconstrução de Diels, parafraseando Clemente. κάλλιστον εἶμεν φαίνεται καὶ βοῦς βοΐ, ὄνος δ' ὄνῳ κάλλιστον, ὗς δέ θην ὑί.” (DK 23 B 5) Nada espantoso que nós assim falemos e regozijemos de nós e nos orgulhemos naturalmente de nós mesmos; também para o cão nada mais belo que o cão, e assim o boi parece ao boi, para o asno o asno é lindo, para o porco o porco é mais. A eficácia do discurso cômico e mimético é notável, a comparação é muito mais eloquente do que qualquer demonstração, e não é preciso nenhuma inteligência sutil para entender o recado. Não há melhor retórica para se falar às praças; e é por isso que um discurso de Lula recheado de metáforas futebolísticas diz efetivamente mais ao coração e à inteligência do que um pronunciamento técnico de Dilma. Não é porque o vocabulário simples seja mais próximo das ruas, não se trata de uma característica de ordem semântica. Nem tampouco é porque as imagens sejam de mais fácil reconhecimento do que os conceitos técnicos, por mais que estes últimos tenham usualmente muito poder de ocultar as coisas. Acredito que a principal explicação está no fato de que o esquema cognitivo da mímese e da metáfora é capaz de transportar o pensamento para outra perspectiva, e de transportar uma ocorrência comum para uma situação incomum ou paradoxal e assim também é capaz de abrir um conhecimento novo e mesmo inesperado.  <br> 
Que essa retórica sapiencial é perfeita para dirigir-se à praça, parece evidente, mas a hipótese que quero levantar vai além, pois acredito que esse modelo retórico baseado na mímese e na comparação também tem origem nas praças, em uma certa sabedoria das hordas populares que invadem as ruas, e que talvez tenham uma inteligência própria não negligenciável. Esta inteligência e sua expressão são características de fenômenos de caráter dionisíaco, como a Komé, a procissão que celebra o deus, os corsos, os blocos de rua, os desfiles de carnaval. Gostaria de reler o fragmento 15 de Xenófanes tendo em vista estes fenômenos e reparar em certas semelhanças nos seus modos de expressão. Estas semelhanças poderiam sinalizar uma relação real entre a sabedoria do filósofo, sua crítica aos homens e seus costumes religiosos, e uma sabedoria presente em outros modos de relacionamento entre deuses e homens. No fragmento de Xenófanes os animais são representações caricaturais dos homens. Bois, cavalos e leões são os artistas que representam os deuses como bois, cavalos e leões. Assim como os homens representam os deuses em figuras e gestas antropomórficas. Essa crítica aos artistas e poetas que instauram as narrativas e imagens cultuadas nos ritos tradicionais vai ocupar os primeiros filósofos até Platão, que os vai expulsar da cidade justa. É uma evidente crítica a poesia mimética. Todavia, e isso é particularmente genial, a crítica ao mimetismo dos homens é feita com uma reflexão igualmente mimética, como já reparamos. Significa que o poeta Xenófanes não sai do esquema mimético para criticá-lo, mas ao contrário, aprofunda-o deliberadamente. É o absurdo mimetismo dos animais que evidencia esta ignorância e vaidade humana que insiste em representar os deuses com formas humanas. É o uso evidente da máscara que mostra que a máscara é máscara e não o próprio real. 
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A evidência da máscara desmascara as falsas representações dos deuses. É como se no fragmento de Xenófanes, vissemos desfilar não os próprios animais, mas um bloco de homens fantasiados de bois, cavalos e leões, que se fazem passar por deuses. É o carnaval de Xenófanes que ri dos homens e dos seus autoenganos. Mas o carnaval, a festa da máscara, da mímese e da representação é, como sabemos, um outro rito que celebra também um outro deus. Não um deus avesso às imagens e representações como o deus do Êxodo, mas o deus de todas as imagens, das imagens como imagens, o deus das máscaras que é Dioniso. Dioniso, o deus da contínua transmutação, que não se assenta em uma única figura, uma única imagem, um substrato único, mas perpassa várias formas divinas e humanas, animais e vegetais, que nascem, morrem e renascem. O deus dos ciclos de destruição e renovação cuja expressão sapiencial acompanha, na forma retórica relacional da comparação e da imitação, a variação das faces sazonais dos seres vivos e da natureza, assim como a festa em que a multidão desfila pelas ruas com suas máscaras desmascarando ilusões no carnaval. Mas por que a komé, o corso popular dionisíaco estaria vestindo propriamente essas fantasias do poema satírico de Xenófanes : máscaras de bois, cavalos e leões? A escolha desses animais sempre me intrigou. A experiência com o carnaval e as suas máscaras inspirou-me uma hipótese, que gostaria de compartir 
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Que máscaras fazem sucesso no carnaval? Quais são as máscaras mais vendidas nas ruas? As máscaras das celebridades, dos famosos, dos homens de destaque, cuja imagem é caricaturada na inversão social e política das festividades dionisíacas. O povo veste as máscaras de Barack Obama, de Osama Bin Laden, de Joaquim Barbosa, de José Dirceu. E aproveita para satirizar, e criticar pela ridicularização, os atos que tiveram grande repercussão política e social. Não apenas os atos recrimináveis, mesmo se foram atos vantajosos à cidade e ao mundo, há sempre um carater altivo e vaidoso nas grandes personalidades que o corso popular inverte e ridiculariza. Então por que as máscaras de bois, cavalos e Acredito que os animais escolhidos não aparecem à toa, mas representam cada um as classes poderosas das poleis : são animais associados à aristocracia, homens poderosos que possuem terras e criam gado, guerreiros que andam a cavalo na paz e na guerra, tiranos vorazes como leões. Estes, ainda mais do que os outros homens, são vaidosos e comparam-se aos deuses, dos quais se dizem próximos, parentes, descendentes. Nesta perspectiva, a crítica a Homero não teria apenas o caráter da incompreensão teológica do antropomorfismo, mas seria também uma crítica à arrogância dos valores aristocráticos transmitidos nestes seus poemas épicos que celebram os grandes herois dos ciclos guerreiros. Por este caminho, faz muito sentido que os deuses agrários e ctonicos, os deuses dos mistérios eleusinos e do cortejo dionisíaco venham nas festividades de renovação, nas leneias ou no carnaval, destronar os herois aristocratas celebrados na poesia épica. A comédia e a tragédia são os testemunhos escritos dessa reversão da aristocracia, ridicularizada numa e amaldiçoada noutra. Nos festivais do carnaval, a poesia épica é escurraçada a bastonadas e ganham as ruas as hordas populares embriagadas e delirantes, travestidas com a eloquência de suas máscaras satíricas.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

SIMPÓSIO OUSIA 2015



A VIDA DE XENÓFANES - Filósofo, poeta, sábio e pensador religioso. Assim era Xenófanes de Cólofon, tema da palestra do Professor Fernando Santoro no "Simpósio Ousia 2015", que vai acontecer nos dias 26 e 27 de outubro, na Sala Celso Lemos, no IFCS. Já que o tema do simpósio é "A Filosofia e os gêneros discursivos", o professor Santoro escolheu Xenófanes para falar, entre outras coisas, da sua ideia de religião. Xenófanes dizia que o ser absoluto, essência de todas as coisas era o Um. E de acordo com Teofrasto uma das fórmulas contidas no pensamento de Xenófanes é: "Tudo é o Um e o Um é o Deus".
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Sobre a vida de Xenófanes o Professor Fernando Santoro escreveu:
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Xenófanes nasceu na cidade de Colofão, na Jônia, em torno de 570 a.C. Foi contemporâneo de Anaximandro, respirou os ares dos filósofos naturalistas da região e, sobretudo, seu pendor pela agonística em torno dos princípios. Com a invasão dos Persas, fugido ou banido, migrou em direção ao ocidente por volta de 545, passando por várias cidades gregas, pela Sicília, pelo sul da Itália, sempre realizando sua atividade de rapsodo. Como rapsodo, interpretava certamente Homero, Hesíodo e também poemas de própria autoria. Pelas suas considerações críticas à épica arcaica se pode imaginar que suas interpretações não fossem somente récitas inspiradas desprovidas de reflexão, tal como Platão caricaturou a atividade dos rapsodos no diálogo Íon. Esteve presente na fundação de Eleia em 540 e muito provavelmente ali manteve intensa atividade intelectual e letiva. Encontrou-se certamente com o jovem Parmênides, mas as notícias de que foi o fundador da Escola Eleata decerto decorrem do desejo de transformar algumas afinidades de prática e doutrina em grandes encontros históricos. De toda forma, a recepção do poeta põe na conta de sua nova teologia, crítica do antropomorfismo de Homero e Hesíodo, a ideia e teoria do Uno, assumida de diversas maneiras pelos filósofos que atuaram em Eleia. Além dos poemas de que nos sobraram fragmentos, também se tem notícia de que escreveu outros poemas épicos, como a Fundação de Colofão e a Fundação de Eleia. Xenófanes viveu mais de noventa anos, conforme seus próprios versos autobiográficos.

O livro Gama da Metafísica de Aristóteles


NÃO É JUSTO USAR A FORÇA CONTRA A SABEDORIA - No livro Gama da Metafísica, Aristóteles descreve a ciência suprema como a ciência do ser enquanto ser. Depois de caracterizá-la, trata de enunciar o primeiro e mais seguro princípio dessa ciência, o qual chamamos de princípio de não contradição. Aristóteles enuncia esse princípio dizendo que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Em seguida, o filósofo apresenta argumentos para refutar eventuais adversários que não aceitem o princípio. Terminada a argumentação, Aristóteles enuncia ainda um outro princípio da ciência do ser enquanto ser, que é conhecido como o princípio do terceiro excluído. Segundo este princípio, não pode haver um intermediário entre contraditórios. Ainda que não receba o título de primeiro e mais seguro princípio, também ele ganha um capítulo do livro Gama dedicado à sua defesa. Aristóteles não trata explicitamente da relação entre os dois princípios e da diferença entre eles. O objetivo deste texto é examinar, a partir dos argumentos apresentados por Aristóteles em favor dos princípios, em que consiste a diferença entre eles. Mais especificamente, cabe perguntar se os dois princípios são vistos como equivalentes pela lógica aristotélica ou se é possível distingui-los em função dos conteúdos que eles vinculam. Nesse último caso, cabe ainda perguntar se as razões para a distinção deveriam ser encontradas em uma possível diferença das estratégias de prova adotadas para cada princípio.

sábado, 20 de junho de 2015

SARAU DE FILOSOFIA




MORA NA FILOSOFIA - O Professor Fernando Santoro pede que seus alunos participem do SARAU DE FILOSOFIA, que vai acontecer na próxima quinta-feira, dia 25 de junho, a partir das 16 horas, nas dependências do IFCS. Na ocasião serão apresentadas leituras de textos filosóficos, apresentações de músicas e récitas de poemas. É importante que haja tanto a presença como espectador, como a participação artística dos alunos do Professor Santoro, assim como a presença de alunos de outras turmas. Portanto, é preciso que todos divulguem o SARAU.  Maiores informações com o aluno Gabriel Neves, um dos organizadores, através do email filosarau@gmail.com.



segunda-feira, 8 de junho de 2015

Metafísica e Arte



MORA NA FILOSOFIA - Um dos mais talentosos alunos da turma do Professor Fernando Santoro, do IFCS, é Vanderson Leite. Para ser um filósofo, ou qualquer outra atividade profissional, é preciso ter, não apenas talento, mas, principalmente, vocação. E Vanderson tem vocação para filósofo. Ele escreve e pensa como filósofo. Quem quiser conferir o texto requinatdo de Vanderson Leite basta acessar o seu blog Estudos Filosóficos Modernos Contemporâneo.
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Vanderson já começou a fazer o trabalho recomendado pelo Professor Santoro. Trabalho esse cujo primeiro capítulos nós publicamos a seguir. Leia e curta. 




METAFÍSICA E ARTE - Segundo o capítulo primeiro da Metafísica de Aristóteles o ser humano também vive de arte. Outros animais são incapazes de produzir a arte pelas mesmas faculdades humanas. Assim Aristóteles discrimina o conhecimento racional em três graus. 
A arte envolve raciocínios que por excelência são consubstanciados pela memória, pois é através dela que deriva dos homens a experiência (1), as recordações e o efeito que o complexo emaranhado de noções se fará. A causa para isso se dá na afirmação de que os animais irracionais não podem desenvolver uma arte como os homens a fazem, porque os animais não possuem a faculdade de conservação da experiência e nem podem cultivar imagens. E a arte julga-se como sendo o único caso de juízo universal segundo Aristóteles. Este juízo é relacionado aos casos de experiência humana capazes de proporcionar um efeito por meio de acontecimentos vividos.
A metafísica (2) é o conhecimento da Φισις (natureza). Ela está preocupada com a Oυσια (substância) e a Ἀρχή (origem). Até que ponto a metafísica interfere na arte? Segundo Aristóteles a fonte de inspiração para o artista que utiliza a experiência para produzir arte está na Φισις. Portanto, a experiência do artista é limitada de certo modo pelo princípio metafísico que leva a validade de todos os outros princípios que possam surgir: o belo, o prazer, etc. 
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Entretanto a experiência não difere da arte, pois a experiência é o conhecimento dos singulares e a arte é o conhecimento dos universais; de outra forma é possível compreender que a experiência está relacionada à arte porque em ambas o modus operandi são singulares, ou seja, uma depende da outra. O médico cura o paciente por meio da experiência. O pintor e o escultor têm como objetivo aplicarem em suas obras a experiência transata por imagens. Além disso, não se pode ignorar o universal ignorando o particular nele contido. Ambos são indissociáveis. 
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Portanto, a arte possui um caráter universal. A arte é superior à medicina. Ela é inerente ao homem, já que este possui a faculdade de pensar, mas o homem também possui a capacidade de julgar e conhecer. Isto pode ser demonstrado pelos sentidos (os sentidos ajudam o homem a conhecer); pela ciência (o desejo de saber é natural ao homem); pela memória (o homem tem a capacidade de reter imagens) e pela experiência (aparece com a com a arte e com a ciência como conhecimento particular das causas).
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1 MORA, José Ferrater. p.101. Em Aristóteles, a experiência fica mais bem integrada dentro da estrutura do conhecimento. Para ele, a experiência surge da multiplicidade numérica de recordações; a persistência das próprias impressões é o tecido da experiência à base do qual se forma a noção, isto é, o universal. A experiência é, pois, a apreensão do singular; sem esta apreensão prévia, não haveria possibilidade de ciência. Além disso, só a experiência pode proporcionar os princípios pertencentes a cada ciência; devem observar-se, primeiro, os fenómenos e ver o que são para proceder, depois, a demonstrações. Mas a ciência propriamente dita só o é do universal, o particular constitui o material e os exemplos. Tal como Platão, Aristóteles destaca a importância da experiência na prática.
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2 ABBAGNANO, A. p.660. A Metafísica também é a Ciência primeira, por ter como objeto o objeto de todas as outras ciências, e como princípio um princípio que limita a validade de todos os outros.
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quinta-feira, 28 de maio de 2015

A poética de Santoro




POESIA E ADULTÉRIO - Em 1999 o Pofessor Fernando Santoro publicou pela Editora Sette Letras o livro "Imaculada". Uma coletânea de poemas e textos poéticos tratando de temas como o amor, a paixão e o adultério. Tudo calcado nos seus estudos sobre Filosofia Antiga e conceitos da poética de Aristóteles. Sobre esse tema Aristóteles escreveu: "Falemos da poesia - dela mesma e das suas espécies, da efetividade de cada uma delas, da composição que se deve dar aos mitos, se quisermos que o poema resulte perfeito, e, ainda, de quantos e quais os elementos de cada espécie e, semelhantemente, de tudo quanto pertence a esta indagação - começando, como é natural, pelas coisas primeiras. A epopéia, a tragédia, assim como a poesia ditirâmbica e a maior parte da aulética e da citarística, todas são, em geral, imitações. Diferem, porém, umas das outras, por três aspectos: ou porque imitam por meios diversos, ou porque imitam por modos diversos e não da mesma maneira".
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Leiam, abaixo, a poética de Santoro.



Soneto Casmurro


- Oh! Flor do céu! Oh! Flor cândida e pura!
Pétalas de nuvem, cálice doce
Teus lábios todos, laivos de ternura,
Dizem que guardam o bem que um anjo trouxe...

- Vem, beija-flor. Provar deste meu mel
Se tens desejo, hás de ter coragem
Supera a paliçada do quartel,
Me livra do espinhaço selvagem...

Roçando-me passando entre espinhos,
Descubro agonizando uns passarinhos:
“Perde-se a vida, ganha-se a batalha!”

Me diz um desses mártires do amor...
E torno – vendo: espinhos são da flor!
“Ganha-se a vida? Perde-se a batalha...”

(Ora!)




Safira

Íris,
Mais que alga marinha, verdíssimas
Que no vento a nuvem, sutilíssimas
Que asas de beija-flor, trementes.

Cílios,
Mais que agulha de fiar, finíssimos
Que a noite mais funda, escuríssimos
Que um veludo puro, envolventes.

Lábios,
Mais que a tez da papoula, escarlates,
Que o hálito das brasas, quentíssimos,
Que a luz da preamar, vazantes.




Nos afronautas

A tua roupa branca de sexta-feira
não desvendava o teu corpo ainda mais branco
mas suspendia-o por sobre o chão
quando dançavas ao sabor dos tambores

Eu não decifro o teu sorriso
não sei se é inocente ou cínico ou vaidoso
Eu não decifro os teus olhos
não sei se fogem ou se procuram ou se escondem

Tu és para mim a página em silêncio,
és o lençol arrumado, o vestido no armário,
Tu és o branco substantivo onde eu branco verbo

esquecendo tudo, não pensando em nada


Para pensar!



Todos os homens aspiram à vida feliz e à felicidade, esta é uma coisa manifesta; mas, se muitos têm a possibilidade de alcançá-la, outros não a têm em virtude de algum azar ou vício de natureza (pois a vida feliz requer um certo acompanhamento de bens externos, em quantidade menor para os indivíduos dotados de melhores disposições e em quantidade maior para aqueles cujas disposições são piores), e outros, finalmente, tendo a possibilidade de ser felizes, imprimem desde o início uma direção errada na sua busca da felicidade. Aristóteles (Ética a Nicómaco)

Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer...



Caros colegas, não esqueçam: o Professor Fernando Santoro está participando de um seminário no exterior e só volta dia 5 de Junho. Portanto, sua próxima aula só vai acontecer no dia 9 de Junho. Até lá todos os alunos devem mergulhar na leitura da Metafísica, de Aristóteles. E aproveitar o tempo para preparar  o trabalho que vai servir de avaliação do curso..
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Vale lembrar que o trabalho consiste num texto impresso com um mínimo de cinco e o máximo de dez páginas. O trabalho deve ser feito em grupo. Cada grupo deve escolher um trecho da Metafísica e desenvolver o seu trabalho. O texto deve traduzir o entendimento que o aluno/grupo teve do pensamento de Aristóteles. É importante que seja um texto claro, objetivo, com um português correto e que tenha como referência os conceitos utilizados no estudo da Filosofia.    
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Quem precisar de algum tipo de orientação, dica, ou apoio, pode contar com o responsável pela monitoria, Waldir Leite.
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domingo, 17 de maio de 2015

A teoria do prazer




Para Aristóteles, o prazer em sua constituição ontológica é semelhante à visão, como uma atividade acabada por toda a sua duração. Completa (teléia), indivisível, e não um movimento para vir a ser. Por isso a importância de refutar a tese platônica do prazer como repleção, retomada por Espeusipo como movimento ou geração. Aristóteles chega a dizer que sendo instantâneo o prazer poderia subsistir até fora do tempo – como na atividade perfeita dos deuses!

Mas Aristóteles tem dificuldade de aprender exatamente a constituição da completude do prazer, de modo que vai apresentar duas definições diferentes: uma primeira, na primeira redação da Ética a Eudemo, e uma segunda, na redação definitiva da teoria. As duas, porém, são conservadas na Ética a Nicômaco, de modo que não podemos afirmar categoricamente que a segunda supere por completo a primeira. As duas merecem ser consideradas.

O prazer é uma atividade desimpedida de uma disposição conforme a natureza.

Nesta primeira definição, o prazer é uma atividade (enérgeia), e portanto uma atualidade completa, e não um processo para tornar-se ou gerar algo. Duas características importantes a qualificam. Primeiro, a conformidade a disposição natural: esta condicionante é importantíssima para distinguir os prazeres conforme a natureza do homem virtuoso, dos prazeres conforme outras naturezas, e para não caracterizar como prazeres reais e sadios os que venham contra a natureza.

Esta ligação do prazer com as disposições naturais também fundamenta a distinção que Aristóteles faz entre prazeres próprios a determinada atividade e os prazeres que lhe estranhos e que funcionam não propriamente como prazeres, mas como obstáculos e desvios de atenção. Estes não são prazeres conforme a natureza daquela atividade. Natureza significa em todos esses casos uma tendência própria, uma índole, um pendor, seja da atividade, seja do agente.

A segunda característica é o eixo de toda essa definição: o ser desimpedido (anempódiston). O desimpedimento resgata a fisiologia cirenaica do prazer, mas com maior acuidade na definição. Equivale ao liso e fluente das compreensões antigas, contra o rugoso, o áspero, o que trava, impede e provoca atrito para a atividade. Mas a atividade desimpedida e fluente não é um movimento como aqueles pensavam, porque a atividade permanece inalterada e completa na sua atualidade efetiva. O desimpedimento também explica como o prazer propicia a melhor realização da atividade, quando ela está em melhores condições de se realizar, sem nenhum obstáculo.

Mas essa definição não satisfaz plenamente o filósofo. Que o prazer esteja relacionado a uma situação completa e efetiva não quer dizer que seja a atividade mesma da qual se diz que é prazerosa. Nem toda atividade conforme a natureza é necessariamente prazerosa quando desimpedida; uma vista que geralmente é agradável quando nítida e desimpedida pode recair, por exemplo, sobre uma cena desagradável. Além do mais, chamamos a atividade de prazerosa, mas seria ela mesma o prazer?
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(Trecho do livro "Arqueologia dos Prazeres", de Fernando Santoro)
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A indagação das causas e dos princípios





Visto que esta ciência (a filosofia) é o objeto das nossas indagações, examinemos de que causas e de que princípios se ocupa a filosofia como ciência; questão que se tomará muito mais clara se examinarmos as diversas ideias que formamos do filósofo. Em primeiro lugar, concebemos o filósofo principalmente como conhecedor do conjunto das coisas, enquanto é possível, sem contudo possuir a ciência de cada uma delas em particular. Em seguida, àquele que pode alcançar o conhecimento de coisas difíceis, aquelas a que só se chega vencendo graves dificuldades, não lhe chamaremos filósofo? De fato, conhecer pelos sentidos é uma faculdade comum a todos, e um conhecimento que se adquire sem esforço em nada tem de filosófico. Finalmente, o que tem as mais rigorosas noções das causas, e que melhor ensina estas noções, é mais filósofo do que todos os outros em todas as ciências. E, entre as ciências, aquela que se procura por si mesma, só pelo anseio do saber, é mais filosófica do que a que se estuda pelos seus resultados; assim como a que domina as mais é mais filosófica do que a que se encontra subordinada a qualquer outra. Não, o filósofo não deve receber leis, mas sim dá-las; nem é necessário que obedeça a outrem, mas deve obedecer-lhe o que seja menos filósofo. (...) Pois bem: o filósofo que possuir perfeitamente a ciência do geral tem necessariamente a ciência de todas as coisas, porque um homem em tais circunstâncias sabe, de certo modo, tudo quanto está compreendido sob o geral. Todavia, pode dizer-se também que se toma muito difícil ao homem alçar-se aos conhecimentos mais gerais; as coisas que são seus objetos como que estão mais distantes do alcance dos sentidos. (...) De tudo quanto dissemos sobre a própria ciência resulta a definição da filosofia que procuramos. É imprescindível que seja a ciência teórica dos primeiros princípios e das primeiras causas, porque uma das causas é o bem, a razão final. E que não é uma ciência prática, prova-o o exemplo dos que primeiramente filosofaram. O que, a princípio, levou os homens a fazerem as primeiras indagações filosóficas foi, como é hoje, a admiração. Entre os objetos que admiravam e que não podiam explicar, aplicaram-se primeiro aos que se encontravam ao seu alcance; depois, passo a passo, quiseram explicar os fenômenos mais importantes; por exemplo, as diversas fases da Lua, o trajeto do Sol e dos astros e, finalmente, a formação do universo. Ir à procura duma explicação e admirar-se é reconhecer que se ignora. (...) Portanto, se os primeiros filósofos filosofaram para se libertarem da ignorância, é evidente que se consagraram à ciência para saber, e não com vista à utilidade.
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(Metafísica, de Aristóteles)
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A vida de Aristóteles

                     


MORA NA FILOSOFIA - Neste vídeo um breve resumo da vida de Aristóteles. Desde o seu nascimento em Estagira, na Macedônia, passando por sua mudança para Atenas, o seu encontro com Platão e tudo o mais. Sua história, suas obras, aspectos curiosos e pitorescos. Vale a pena assistir...

quinta-feira, 7 de maio de 2015







O homem é o mais sábio de todos os seres, porque ele tem as mãos. - Anaxágoras

Arqueologia dos Prazeres, livro de Fernando Santoro


A vida sem festas é um longo caminho sem hospedarias.

MORA NA FILOSOFIA - Quantas vezes por dia nós sentimos prazer? Quantas vezes por dia buscamos o prazer? O livro “Arqueologia dos Prazeres”, do professor Fernando Santoro, resgata a discussão originária dos filósofos gregos sobre o tema, que nos encanta e atormenta. Afinal o prazer é um bem, identifica-se com a felicidade ou não? Deve ser perseguido, evitado, controlado? Capaz de dissecar o assunto e demonstrá-lo em aulas fascinantes para platéias cada vez mais numerosas, o filósofo Fernando Santoro nos apresenta um livro original e acessível. Nele acompanhamos, deliciados, o levantamento das teses ontológicas do prazer, sua reação com o repouso e o movimento, com o corpo e o intelecto, com a ação e a paixão. Hedonistas, estóicos, materialistas, cínicos, realistas, idea-listas: entenda como e por que algumas escolas defendem o prazer e por que outras o atacam. Saiba o que pensavam sobre o assunto os primeiros sábios, e como Empédocles, Demócrito, Aristóteles, Platão e Epicuro, entre outros gregos fundamentais, associavam o prazer à beleza e ao desejo.
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Um livro que se lê com muito prazer. Um trecho a seguir...

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A Escola Cirenaica foi fundada por Aristipo de Cirene, que acorreu jovem para Atenas atraído por Sócrates. O exemplo de domínio sobre os prazeres, a despeito da medida, inspirou suas ideias e sua conduta. Ademais, aprendeu muito bem a agilidade da palavra, a resposta na ponta da língua, como veremos. Os cirenaicos estabeleceram sua doutrina especialmente em torno da questão do prazer. Para eles, havia dois estados de alma: o prazer e a dor. Quanto à fisiologia, não lhes interessava o conhecimento da sua constituição para além do que servisse a fruí-lo, entendiam o prazer como um movimento suave e a dor como um movimento brusco, inspirados na teoria das sensações de Anaxágoras. O fim supremo é o movimento calmo que resulta em sensação. Por isso, não acreditavam em prazeres estáticos nem que a calma ou a ausência de dor equivalessem a qualquer prazer. Não faziam nenhuma distinção de valor entre os prazeres. Mesmo que a ação resultante e mgozo fosse vil ou vergonhosa, o prazer não deixava por isso de ser algo bom em si mesmo. 
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 A fruição do prazer é o bem supremo, e a felicidade é o acúmulo de prazeres isolados ao longo da vida. Nestes estão incluídos os prazeres passados e os futuros, mais como propiciadores de uma boa disposição do que como fruição de lembranças e expectativas, exauridas no tempo e vazias de sentido. Concentravam-se em viver o momento presente. Não calculavam trocar um prazer maior por dores menores no dia seguinte, porque o prazer do dia de hoje é certo e o futuro é duvidoso. A única coisa certa no futuro é a morte, o que justifica ainda mais concentrar as preocupações nas ocupações e sensações presentes.
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domingo, 3 de maio de 2015



Visto que esta ciência (a filosofia) é o objeto das nossas indagações, examinemos de que causas e de que princípios se ocupa a filosofia como ciência; questão que se tomará muito mais clara se examinarmos as diversas ideias que formamos do filósofo. Em primeiro lugar, concebemos o filósofo principalmente como conhecedor do conjunto das coisas, enquanto é possível, sem contudo possuir a ciência de cada uma delas em particular. Em seguida, àquele que pode alcançar o conhecimento de coisas difíceis, aquelas a que só se chega vencendo graves dificuldades, não lhe chamaremos filósofo? De fato, conhecer pelos sentidos é uma faculdade comum a todos, e um conhecimento que se adquire sem esforço em nada tem de filosófico. Finalmente, o que tem as mais rigorosas noções das causas, e que melhor ensina estas noções, é mais filósofo do que todos os outros em todas as ciências. E, entre as ciências, aquela que se procura por si mesma, só pelo anseio do saber, é mais filosófica do que a que se estuda pelos seus resultados; assim como a que domina as mais é mais filosófica do que a que se encontra subordinada a qualquer outra. Não, o filósofo não deve receber leis, mas sim dá-las; nem é necessário que obedeça a outrem, mas deve obedecer-lhe o que seja menos filósofo. (...) 
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Pois bem: o filósofo que possuir perfeitamente a ciência do geral tem necessariamente a ciência de todas as coisas, porque um homem em tais circunstâncias sabe, de certo modo, tudo quanto está compreendido sob o geral. Todavia, pode dizer-se também que se toma muito difícil ao homem alçar-se aos conhecimentos mais gerais; as coisas que são seus objetos como que estão mais distantes do alcance dos sentidos. (...) 
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De tudo quanto dissemos sobre a própria ciência resulta a definição da filosofia que procuramos. É imprescindível que seja a ciência teórica dos primeiros princípios e das primeiras causas, porque uma das causas é o bem, a razão final. E que não é uma ciência prática, prova-o o exemplo dos que primeiramente filosofaram. O que, a princípio, levou os homens a fazerem as primeiras indagações filosóficas foi, como é hoje, a admiração. Entre os objetos que admiravam e que não podiam explicar, aplicaram-se primeiro aos que se encontravam ao seu alcance; depois, passo a passo, quiseram explicar os fenômenos mais importantes; por exemplo, as diversas fases da Lua, o trajeto do Sol e dos astros e, finalmente, a formação do universo. Ir à procura duma explicação e admirar-se é reconhecer que se ignora. (...) Portanto, se os primeiros filósofos filosofaram para se libertarem da ignorância, é evidente que se consagraram à ciência para saber, e não com vista à utilidade.
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(Trecho da Metafísica)
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O verdadeiro sábio procura a ausênca de dor, e não o prazer.





O ESPIRITO DE ARISTÓTELES - Um CD com um repertório só com músicas gregas da antiguidade. A trilha sonora perfeita para ler a Metafísica, de Aristóteles...

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Poética, Aristóteles



A Poética (em grego antigo: Περὶ ποιητικῆς; em latim: poiétikés), provavelmente registrada entre os anos 335 a.C. e 323 a.C. (Eudoro de Souza, 1993, pg.8), é um conjunto de anotações das aulas de Aristóteles sobre o tema da poesia e da arte em sua época, pertencentes aos seus escritos acroamáticos (para serem transmitidos oralmente aos seus alunos) ou esotéricos (textos para iniciados). Estes cadernos de anotações eram destinados às aulas do Liceu e serviam de guia para o professor Aristóteles, anotações esquemáticas destinadas a serem desenvolvidas em suas aulas e não para serem conhecidas através da leitura. Praticamente tudo que se conservou de Aristóteles faz parte das obras acroamáticas. É o primeiro escrito conhecido que procura especificamente analisar determinadas formas da arte e da literatura, também um registro limitado de como era a arte grega em seu tempo. 
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Para a aula do próximo dia 28 de abril, o Professor Santoro sugere a leitura de dois capítulos da Poética. Os capítulos 4 e 9, transcritos a seguir. A leitura vai servir para ajudar a entender alguns aspectos da Metafísica, texto principal do nosso curso. 

Poética, de Aristóteles - Cap. 4



Origem da poesia. Causas. História da poesia trágica e cômica. 

13. Ao que parece, duas causas, e ambas naturais, geraram a poesia. O imitar é congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele o mais imitador, e, por imitação, aprende as primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado. 

14. Sinal disto é o que acontece na experiência: nós contemplamos com prazer as imagens mais exatas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância, por exemplo, [as representações de] animais ferozes e [de] cadáveres. Causa é que o aprender não só muito apraz aos filósofos, mas também, igualmente, aos demais homens, se bem que menos participem dele. Efetivamente, tal é o motivo por que se deleitam perante as imagens: olhando-as, aprendem e discorrem sobre o que seja cada Uma delas, [e dirão], por exemplo, "este é tal". Porque, se suceder que alguém não tenha visto o original, nenhum prazer lhe advirá da imagem, como imitada, mas tão-somente da execução, da cor ou qualquer outra causa da mesma espécie. 

15. Sendo, pois, a imitação própria da nossa natureza (e a harmonia e o ritmo, porque é evidente que os metros são partes do ritmo), os que ao princípio foram mais naturalmente propensos para tais coisas pouco a pouco deram origem à poesia, procedendo desde os mais toscos improvisos. 

16. A poesia tomou diferentes formas, segundo a diversa índole particular [dos poetas]. Os de mais alto ânimo imitam as ações nobres e das mais nobres personagens; e os de mais baixas inclinações voltaram-se para as ações ignóbeis, compondo, estes, vitupérios, e aqueles, hinos e encômios. Não podemos, é certo, citar poemas deste gênero, dos [poetas que viveram] antes de Homero, se bem que, verossimilmente, muitos tenham existido; mas, a começar em Homero, temos o Margites e outros poemas semelhantes, nos quais, por mais apto, se introduziu o metro jâmbico (que ainda hoje assim se denomina porque nesse metro se injuriavam [iámbizon]). De modo que, entre os antigos, uns foram poetas em verso heróico, outros o foram em verso jâmbico. 

17. Mas Homero, tal como foi supremo poeta no gênero sério, pois se distingue não só pela excelência como pela feição dramática das suas imitações, assim também foi o primeiro que traçou as linhas fundamentais da comédia, dramatizando, não o vitupério, mas o ridículo. Na verdade, o Margites tem a mesma analogia com a comédia que têm a Ilíada e a Odisséia com a tragédia. 

18. Vindas à luz a tragédia e a comédia, os poetas, conforme a própria índole os atraía para este ou aquele gênero de poesia, uns, em vez de jambos, escreveram comédias, outros, em lugar de epopéias, compuseram tragédias, por serem estas últimas formas mais estimáveis do que as primeiras. 

19. Examinar, depois, se nas formas trágicas [a poesia austera] atinge ou não atinge a perfeição [do gênero], quer a consideremos em si mesma, quer no que respeita ao espetáculo — isso seria outra questão. 

20. Mas, nascida de um princípio improvisado (tanto a tragédia, como a comédia: a tragédia, dos solistas do ditirambo; a comédia, dos solistas dos cantos fálicos, composições estas ainda hoje estimadas em muitas das nossas cidades), [a tragédia] pouco a pouco foi evoluindo, à medida que se desenvolvia tudo quanto nela se manifestava; até que, passadas muitas transformações, a tragédia se deteve, logo que atingiu a sua forma natural. Esquilo foi o primeiro que elevou de um a dois o número dos atores, diminuiu a importância do coro e fez do diálogo protagonista. Sófocles introduziu três atores e a cenografia. Quanto à grandeza, tarde adquiriu [a tragédia] o seu alto estilo: [só quando se afastou] dos argumentos breves e da elocução grotesca, [isto é,] do [elemento] satírico. Quanto ao metro, substituiu o tetrâmetro [trocaico] pelo [trímetro] jâmbico. Com efeito, os poetas usaram primeiro o tetrâmetro porque as suas composições eram satíricas e mais afins à dança; mas, quando se desenvolveu o diálogo, o engenho natural logo encontrou o metro adequado; pois o jambo é o metro que mais se conforma ao ritmo natural da linguagem corrente: demonstra-o o fato de muitas vezes proferirmos jambos na conversação, e só raramente hexâmetros, quando nos elevamos acima do tom comum.

21. Quanto ao número de episódios e outros ornamentos que se haja acrescentado a cada parte, consideremos o assunto tratado; muito laborioso seria discorrer sobre tudo isso em pormenor.


Poética, de Aristóteles - Capitulo 9



Poesia e história. Mito trágico e mito tradicional. Particular e universal. Piedade e terror. Surpreendente e maravilhoso. 

50. Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postos em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa) — diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular. Por "referir-se ao universal" entendo eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamentos e ações que, por liame de necessidade e verossimilhança, convém a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes às suas personagens; particular, pelo contrário, é o que fez Alcibíades ou o que lhe aconteceu. 

51. Quanto à comédia, já ficou demonstrado [este caráter universal da poesia]; porque os comediógrafos, compondo a fábula segundo a verossimilhança, atribuem depois às personagens os nomes que lhes parece, e não fazem como os poetas jâmbicos, que se referem a indivíduos particulares. 

52. Mas na tragédia mantêm-se os nomes já existentes. A razão é a seguinte: o que é possível é plausível; ora, enquanto as coisas não acontecem, não estamos dispostos a crer que elas sejam possíveis, mas é claro que são possíveis aquelas que aconteceram, pois não teriam acontecido se não fossem possíveis. 

53. Todavia, sucede também que em algumas tragédias são conhecidos os nomes de uma ou duas personagens, sendo os outros inventados; em outras tragédias nenhum nome é conhecido, como no Anteu de Agatão. em que são fictícios tanto os nomes como os fatos, o que não impede que igualmente agrade. Pelo que não é necessário seguir à risca os mitos tradicionais donde são extraídas as nossas tragédias; pois seria ridícula fidelidade tal, quando é certo que ainda as coisas conhecidas são conhecidas de poucos, e contudo agradam elas a todos igualmente. 

54. Daqui claramente se segue que o poeta deve ser mais fabulador que versificador; porque ele é poeta pela imitação e porque imita ações. E ainda que lhe aconteça fazer uso de sucessos reais, nem por isso deixa de ser poeta, pois nada impede que algumas das coisas que realmente acontecem sejam, por natureza, verossímeis e possíveis e, por isso mesmo, venha o poeta a ser o autor delas. 

55. Dos mitos e ações simples, os episódicos são os piores. Digo "episódico" o mito em que a relação entre um e outro episódio não é necessária nem verossímil. Tais são os mitos de maus poetas, por [imperícia] deles, e às vezes de bons poetas, por [condescendência com os] atores. É que, para compor partes declamatórias, chegam a forçar a fábula para além dos próprios limites e a romper o nexo da ação. 56. Como, porém, a tragédia não só é imitação de uma ação completa, como também de casos que suscitam o terror e a piedade, e estas emoções se manifestam principalmente quando se nos deparam ações paradoxais, e, perante casos semelhantes, maior é o espanto que ante os feitos do acaso e da fortuna (porque, ainda entre os eventos fortuitos, mais maravilhosos parecem os que se nos afiguram acontecidos de propósito — tal é, por exemplo, o caso da estátua de Mítis em Argos, que matou, caindo-lhe em cima, o próprio causador da morte de Mítis, no momento em que a olhava —, pois fatos semelhantes não parecem devidos ao mero acaso), daqui se segue serem indubitavelmente os melhores os mitos assim concebidos.


Ética a Nicomaco, Capitulo 7 do Livro 10




Ao mesmo tempo em que explica a Metafísica, o professor Fernando Santoro se utiliza de trechos da Ética a Nicomaco para melhor ilustrar sua interpretação da filosofia de Aristóteles. O trecho abaixo deve ser lido para a aula do próximo dia 28 de abril



Se a felicidade é atividade conforme à virtude, será razoável que ela esteja também em concordância com a mais alta virtude; e essa será a do que existe de melhor em nós. Quer seja a razão, quer alguma outra coisa esse elemento que julgamos ser o nosso dirigente e guia natural, tornando a seu cargo as coisas nobres e divinas, e quer seja ele mesmo divino, quer apenas o elemento mais divino que existe em nós, sua atividade conforme à virtude que lhe é própria será a perfeita felicidade. Que essa atividade é contemplativa, já o dissemos anteriormente. Ora, isto parece estar de acordo não só com o que muitas vezes asseveramos, mas também com a própria verdade. Porque, em primeiro lugar, essa atividade é a melhor (pois não só é a razão a melhor coisa que existe em nós, como os objetos da razão são os melhores dentre os objetos cognoscíveis); e, em segundo lugar, é a mais contínua, já que a contemplação da verdade pode ser mais contínua do que qualquer outra atividade. E pensamos que a felicidade tem uma mistura de prazer, mas a atividade da sabedoria filosófica é reconhecidamente a mais aprazível das atividades virtuosas; pelo menos, julga-se que o seu cultivo oferece prazeres maravilhosos pela pureza e pela durabilidade, e é de supor que os que sabem passem o seu tempo de maneira mais aprazível do que os que indagam. 

Além disso a auto-suficiência de que falamos deve pertencer principalmente à atividade contemplativa. Porque, embora um filósofo, assim como um homem justo ou o que possui qualquer outra virtude, necessite das coisas indispensáveis à vida, quando está suficientemente provido de coisas dessa espécie o homem justo precisa ter com quem e para com quem agir justamente, e o temperante, o corajoso e cada um dos outros que se encontram no mesmo caso; mas o filósofo, mesmo quando sozinho, pode contemplar a verdade, e tanto melhor o fará quanto mais sábio for. Talvez possa fazê-lo melhor se tiver colaboradores, mas ainda assim é ele o mais auto-suficiente de todos. E essa atividade parece ser a única que é amada por si mesma, pois dela nada decorre além da própria contemplação, ao passo que das atividades práticas sempre tiramos maior ou menor proveito, à parte da ação. 

Além disso, pensa-se que a felicidade depende dos lazeres; porquanto trabalhamos para poder ter momentos de ócio, e fazemos guerra para poder viver em paz. Ora, a atividade das virtudes práticas exerce-se nos assuntos políticos ou militares, mas as ações relativas a esses assuntos não parecem encerrar lazeres. Principalmente as ações guerreiras, pois ninguém escolhe fazer guerra, nem tampouco a provoca, pelo gosto de estar em guerra; e um homem teria a tempera do maior dos assassinos se convertesse os seus amigos em inimigos a fim de provocar batalhas e matanças. Mas a ação do estadista também não encerra lazeres, e — além da ação política em si mesma — visa ao poder e às honras despóticas, ou pelo menos à felicidade para ele próprio e para os seus concidadãos — uma felicidade diferente da ação política, e evidentemente buscada como sendo diferente. Portanto, se entre as ações virtuosas as de índole militar ou política se distinguem pela nobreza e pela grandeza, e estas não encerram lazeres, visam a um fim diferente e não são desejáveis por si mesmas, enquanto a atividade da razão, que é contemplativa, tanto parece ser superior e mais valiosa pela sua seriedade como não visar a nenhum fim além de si mesma e possuir o seu prazer próprio (o qual, por sua vez, intensifica a atividade), e a auto-suficiência, os lazeres, a isenção de fadiga (na medida em que isso é possível ao homem), e todas as demais qualidades que são atribuídas ao homem sumamente feliz são, evidentemente, as que se relacionam com essa atividade, segue-se que essa será a felicidade completa do homem, se ele tiver uma existência completa quanto à duração (pois nenhum dos atributos da felicidade é incompleto). 

Mas uma tal vida é inacessível ao homem, pois não será na medida em que é homem que ele viverá assim, mas na medida em que possui em si algo de divino; e tanto quanto esse elemento é superior à nossa natureza composta, o é também a sua atividade ao exercício da outra espécie de virtude. Se, portanto, a razão é divina em comparação com o homem, a vida conforme à razão é divina em comparação com a vida humana. Mas não devemos seguir os que nos aconselham a ocupar-nos com coisas humanas, visto que somos homens, e com coisas mortais, visto que somos mortais; mas, na medida em que isso for possível, procuremos tornar-nos imortais e envidar todos os esforços para viver de acordo com o que há de melhor em nós; porque, ainda que seja pequeno quanto ao lugar que ocupa, supera a tudo o mais pelo poder e pelo valor. E dir-se-ia, também, que esse elemento é o próprio homem, já que é a sua parte dominante e a melhor dentre as que o compõem. Seria estranho, pois, que não escolhesse a vida do seu próprio ser, mas a de outra coisa. E o que dissemos atrás tem aplicação aqui: o que é próprio de cada coisa é, por natureza, o que há de melhor e de aprazível para ela; e assim, para o homem a vida conforme à razão é a melhor e a mais aprazível, já que a razão, mais que qualquer outra coisa, é o homem. Donde se conclui que essa vida é também a mais feliz.

quarta-feira, 8 de abril de 2015




ÉTICA A NICOMACO - LIVRO 1 - Abaixo as primeiras reflexões do livro Ética a Nicomaco, conforme recomendou o Professor Santoro para a aula da próxima semana (dia 14 de Abril). Quem quiser ler o livro na íntegra, basta acessar o PDF clicando AQUI.


1 

Admite-se geralmente que toda arte e toda investigação, assim como toda ação e toda escolha, têm em mira um bem qualquer; e por isso foi dito, com muito acerto, que o bem é aquilo a que todas as coisas tendem. Mas observa-se entre os fins uma certa diferença: alguns são atividades, outros são produtos distintos das atividades que os produzem. Onde existem fins distintos das ações, são eles por natureza mais excelentes do que estas. Ora, como são muitas as ações, artes e ciências, muitos são também os seus fins: o fim da arte médica é a saúde, o da construção naval é um navio, o da estratégia é a vitória e o da economia é a riqueza. Mas quando tais artes se subordinam a uma única faculdade — assim como a selaria e as outras artes que se ocupam com os aprestos dos cavalos se incluem na arte da equitação, e esta, juntamente com todas as ações militares, na estratégia, há outras artes que também se incluem em terceiras —, em todas elas os fins das artes fundamentais devem ser preferidos a todos os fins subordinados, porque estes últimos são procurados a bem dos primeiros. Não faz diferença que os fins das ações sejam as próprias atividades ou algo distinto destas, como ocorre com as ciências que acabamos de mencionar. 





Se, pois, para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo e tudo o mais é desejado no interesse desse fim; e se é verdade que nem toda coisa desejamos com vistas em outra (porque, então, o processo se repetiria ao infinito, e inútil e vão seria o nosso desejar), evidentemente tal fim será o bem, ou antes, o sumo bem. Mas não terá o seu conhecimento, porventura, grande influência sobre a essa vida? Semelhantes a arqueiros que têm um alvo certo para a sua pontaria, não alcançaremos mais facilmente aquilo que nos cumpre alcançar? Se assim é, esforcemo-nos por determinar, ainda que em linhas gerais apenas, o que seja ele e de qual das ciências ou faculdades constitui o objeto. Ninguém duvidará de que o seu estudo pertença à arte mais prestigiosa e que mais verdadeiramente se pode chamar a arte mestra. Ora, a política mostra ser dessa natureza, pois é ela que determina quais as ciências que devem ser estudadas num Estado, quais são as que cada cidadão deve aprender, e até que ponto; e vemos que até as faculdades tidas em maior apreço, como a estratégia, a economia e a retórica, estão sujeitas a ela. Ora, como a política utiliza as demais ciências e, por outro lado, legisla sobre o que devemos e o que não devemos fazer, a finalidade dessa ciência deve abranger as das outras, de modo que essa finalidade será o bem humano. Com efeito, ainda que tal fim seja o mesmo tanto para o indivíduo como para o Estado, o deste último parece ser algo maior e mais completo, quer a atingir, quer a preservar. Embora valha bem a pena atingir esse fim para um indivíduo só, é mais belo e mais divino alcançá-lo para uma nação ou para as cidades-Estados. Tais são, por conseguinte, os fins visados pela nossa investigação, pois que isso pertence à ciência política numa das acepções do termo. 



3 

Nossa discussão será adequada se tiver tanta clareza quanto comporta o assunto, pois não se deve exigir a precisão em todos os raciocínios por igual, assim como não se deve buscá-la nos produtos de todas as artes mecânicas. Ora, as ações belas e justas, que a ciência política investiga, admitem grande variedade e flutuações de opinião, de forma que se pode considerá-las como existindo por convenção apenas, e não por natureza. E em torno dos bens há uma flutuação semelhante, pelo fato de serem prejudiciais a muitos: houve, por exemplo, quem perecesse devido à sua riqueza, e outros por causa da sua coragem. Ao tratar, pois, de tais assuntos, e partindo de tais premissas, devemos contentar-nos em indicar a verdade aproximadamente e em linhas gerais; e ao falar de coisas que são verdadeiras apenas em sua maior parte e com base em premissas da mesma espécie, só poderemos tirar conclusões da mesma natureza. E é dentro do mesmo espírito que cada proposição deverá ser recebida, pois é próprio do homem culto buscar a precisão, em cada gênero de coisas, apenas na medida em que a admite a natureza do assunto. Evidentemente, não seria menos insensato aceitar um raciocínio provável da parte de um matemático do que exigir provas científicas de um retórico. Ora, cada qual julga bem as coisas que conhece, e dessas coisas é ele bom juiz. Assim, o homem que foi instruído a respeito de um assunto é bom juiz nesse assunto, e o homem que recebeu instrução sobre todas as coisas é bom juiz em geral. Por isso, um jovem não é bom ouvinte de preleções sobre a ciência política. Com efeito, ele não tem experiência dos fatos da vida, e é em torno destes que giram as nossas discussões; além disso, como tende a seguir as suas paixões, tal estudo lhe será vão e improfícuo, pois o fim que se tem em vista não é o conhecimento, mas a ação. E não faz diferença que seja jovem em anos ou no caráter; o defeito não depende da idade, mas do modo de viver e de seguir um após outro cada objetivo que lhe depara a paixão. A tais pessoas, como aos incontinentes, a ciência não traz proveito algum; mas aos que desejam e agem de acordo com um princípio racional o conhecimento desses assuntos fará grande vantagem. Sirvam, pois, de prefácio estas observações sobre o estudante, a espécie de tratamento a ser esperado e o propósito da investigação.