Com algumas obras de juventude, como A Origem da Tragédia (1872) e A
Filosofia na Idade Trágica dos Gregos (1873), Nietzsche abriu os olhos da filosofia
para uma experiência de sabedoria que ele mesmo denominaria de ‘Dionisíaca’. A
sua visada era sem sombra de dúvida inspirada na poesia dramática, não apenas a
tragédia mas também a comédia antiga. Com a visada artística e moral da tragédia
clássica, ele ganhava pesos para avaliar a existência e medir as ideias dos próprios
filósofos, assim como nas Rãs, Aristófanes põe Dioniso a comparar o peso artístico
de Eurípides e de Ésquilo para saber quem merece o trono da dramaturgia. Todavia,
com um olhar ainda bastante influenciado pela filologia e filosofia do seu tempo,
Nietzsche esquematiza na sua análise da constituição da tragédia uma dicotomia
entre dois polos em tensão: o dionisíaco e o apolíneo; mesmo que, para ele, se
inverta a valoração tradicional da história das ciências e a racionalidade apolínea
não seja vista como o ápice da civilização grega, mas sim o sintoma da sua
decadência. Para Nietzsche, as filosofias de Sócrates e Platão são a expressão de
um declínio da força e do caráter grego, os quais eram nítidos e pujantes em
pensadores como Anaximandro, Heráclito e Empédocles. Ele avalia a cultura e a
civilização do mesmo modo que Aristófanes, para quem o arcaico Ésquilo vence em
arte um Eurípides mais dialético e racional. Giorgio Colli, na Origem da Filosofia
(1975), levou adiante o projeto Nietzschiano de desconstrução dos ideais ascéticos
da ciência e da filosofia, ao mesmo tempo em que o criticava no detalhe, mostrando
o quanto a dimensão delirante da sabedoria não era prerrogativa exclusiva de
Dioniso e sua corte de sábios e poetas, mas também vigorava nas artes luzentes de
Apolo, como na vidência e revelação em transe dos mensageiros oraculares.
Heráclito e Sócrates não se opõem para Colli, mas são dois modelos de filósofos
apolíneos por excelência, portadores de uma racionalidade não apenas lúcida mas
também ambígua, enigmática e paradoxal.
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O final do Séc. XX foi muito receptivo à ideia de uma sabedoria mais
profunda, para a qual a racionalidade e seus valores maiores como a identidade, a
não-contradição, a universalidade, a substancialidade, a causalidade encontrariam
não somente seus limites mas também sua superação, desconstrução e mesmo
destruição. Todavia, a expressão desta sabedoria mais profunda sempre pareceu a
reboque da mesma racionalidade que ela negava: o dionisíaco se reconhecendo
pelo não racional, pelo não identitário, pelo não substancial, pelo não universal.
Parece reconhecer-se sempre negativamente, como a fronteira e o limite da própria
filosofia e das ciências positivas. Todavia, a presença de Dioniso e uma sabedoria
em seu em torno é notoriamente anterior, e para Nietzsche, mais pujante, senão
este não teria identificado como um momento histórico de decadência o que seria a
reação ou o esvaziamento desta sabedoria. Em sendo historicamente anterior, é
preocupante que nos limitemos quase sempre a compreendê-la não a partir dela
mesma, mas a partir do que a sucede e a oblitera, como diz Nietzsche, ou seja, a
partir de dicotomias metafísicas, tais como a oposição racional x irracional.
Tendemos a ver assim as expressões dionisíacas como limite e negação da
racionalidade metafísica e não como o fundo e o terreno mesmo aonde esta vem a
Esta limitação do nosso olhar não é uma imposição histórica incontornável.
Não estamos condenados ao passado do passado. O passado também abre futuros,
e o futuro do passado, talvez passe por reapropriações e releituras do que sempre
esteve aí presente, à nossa disposição. Não se deve negar, no caso que ora nos
interessa, o fato de que há efetivamente na literatura antiga referências ao que
podemos considerar como uma sabedoria dionisíaca, sem que esta sabedoria se
apresente apenas como negação de lucidez e racionalidade. Há referências a partir
das quais acreditamos que é possível uma caracterização efetivamente positiva e
não apenas feita a partir das sombras ou dos contornos da racionalidade metafísica
que constituiu o mundo das ciências e das técnicas ocidentais. Sombras e limites
que a crise contemporânea dos valores realmente é bem mais capaz de promover, e
que não se configuram criativamente pujantes como teria sido aquela sabedoria
capaz de engendrar uma expressão sapiencial e artística, de teor ao mesmo tempo
sagrado e político envolvendo avassaladoramente toda a comunidade, como foi a
tragédia clássica encenada nos festivais dionisíacos.
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A história da civilização não tem necessariamente o curso linear dos
romances e dos manuais, e forças recalcadas da experiência do saber, forças
originárias de pensamento, às vezes, podem aparecer onde menos se espera.
Vamos explorar uma tal perspectiva, buscando em um fenômeno explicitamente
dionisíaco um modo original de saber e pensar, que assim também chamaremos de
‘pensar dionisíaco’. Este fenômeno dionisíaco por excelência é o carnaval. Como
nasci carioca, o carnaval para mim é coisa muito séria, e vivida com intensidade não
apenas nos quatro dias do calendário oficial, mas na experiência cotidiana do ciclo e
da renovação, o ano inteiro de Dioniso.
Mas não será o carnaval carioca, meu ponto de partida. O ponto de partida
desta especulação é um texto de um poeta e filósofo grego do século sexto antes de
Cristo: Xenófanes de Colofão. A história da filosofia tradicional, influenciada pelo
comentário de Platão que o classificou junto aos Eleatas1, considera Xenófanes um
precursor do monoteísmo no ocidente. Eu não o vejo assim, tanto por razões de
ordem histórica quanto pelo que considero mais importante: a própria análise
filológica e filosófica dos textos. Sem dúvida, boa parte do que nos foi transmitido
desse rapsodo, ao mesmo tempo sábio e poeta, são críticas ao modo como os
homens entendem e cultuam os deuses. Mas de crítico da religiosidade mundana a
refutador do paganismo, como querem os apologetas cristãos, a distância é grande.
A Xenófanes se junta Heráclito, e outros sábios do sexto século, na
condenação do antropomorfismo, e ambos citam explicitamente Homero como alvo
de suas críticas. Heráclito de Éfeso quer escurraçar estes poetas:
Este Homero devia ser expulso dos concursos e bastonado,
este Arquíloco também
Xenófanes de Colofão não modera os impropérios:
Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses tudo quanto entre os homens é vergonhoso e censurável,
roubos, adultérios e mentiras recíprocas. Mas a crítica ao antropomorfismo não os faz menos pagãos e menos devotos de
certos deuses do panteão tradicional grego, como Apolo e Dioniso, entre outros, que
são referidos normalmente de modo indireto e ambíguo, como no fragmento 17 de
Xenófanes, em que não se sabe o fim da referência descritiva, se ela comporta ou
não uma crítica, nem o seu teor:
ἑστᾶσιν δ᾿ ἐλάτης <βάκχοι>4 πυκινὸν περὶ δῶμα.
Fincam de pinho em torno da casa firme.
<br>
De toda forma, Xenófanes refere-se aos deuses no plural, como no fragmento 18:
οὔτοι ἀπ᾿ ἀρχῆς πάντα θεοὶ θνητοῖσ᾿ ὑπέδειξαν6,
ἀλλὰ χρόνωι ζητοῦντες ἐφευρίσκουσιν ἄμεινον.
<br>
Os deuses de início não mostram tudo aos mortais,
mas os que investigam, com o tempo, descobrem o melhor.
E mesmo quando vai falar de um deus que se sobrepõe a tudo, este deus está
também acima de outros deuses, de modo que não é único:
Um único deus, entre deuses e homens o maior,
em nada semelhante aos mortais nem no corpo nem no pensamento.7
De toda forma, o dionisismo que queremos evocar em Xenófanes não é religioso,
mas diz respeito a um modo de pensar. Este modo está exemplarmente posto no
fragmento 15, que vamos agora ler e em seguida analisar :
ὑπέδειξαν Flor. 29, 41 : παρέδειξαν Ecl. I,8,2
1 ἀλλ᾿ εἰ χεῖρας ἔχον βόες <ἵπποι τ᾿>8 ἠὲ λέοντες
ἢ γράψαι χείρεσσι καὶ ἔργα τελεῖν ἅπερ ἄνδρες,
ἵπποι μέν θ᾿ ἵπποισι βόες δέ τε βουσὶν ὁμοίας
καί <κε>9 θεῶν ἰδέας ἔγραφον καὶ σώματ᾿ ἐποίουν
5 τοιαῦθ᾿ οἷόν περ καὐτοὶ δέμας εἶχον <ἕκαστοι>10.
Clemente de Alexandria, Miscelâneas V, 109, 3 (seq. B 14)
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Mas se tivessem mãos os bois, 11 e os leões,
quando pintassem com as mãos e compusessem obras como os homens,
cavalos como cavalos, bois semelhantes aos bois
pintariam a forma dos deuses e fariam corpos
5 tais como fosse o próprio aspecto 12.
A crítica ao antropomorfismo dos deuses é clara. Todavia, mesmo se, tal como
acontece na República de Platão, Xenófanes critica Homero e Hesíodo porque estes
retratam os deuses realizando atos indignos da divindade, esta crítica não se faz ao
modo de uma demonstração como faz Sócrates, que argumenta que como os
Deuses devem ser sumamente felizes e bons, tais retratos ignominiosos só podem
ser falsos. Xenófanes não chega a professar nenhum tipo de conhecimento dos
deuses, conhecimento que ele mesmo suspende, no fragmento 34:
E ao certo nenhum homem sabe coisa alguma
nem há de saber algo sobre os deuses nem sobre o todo de que falo;
pois se, na melhor das hipóteses, ocorresse-lhe dizer algo perfeito,
ele mesmo, no entanto, não saberia; opinião é o que se cria sobre tudo.
10 <ἕκαστοι> add. Herwerden
13 «περὶ πάντων» : “acerca de tudo” ou “acerca de todas as coisas” pode ter um sentido
distributivo: “cada uma das coisas de que eu falo” ou integrante: “o que eu falo sobre a
totalidade do universo”. As duas acepções são possíveis e Xenófanes parece usar ambas.
A crítica de Xenófanes ao antropomorfismo não é uma crítica ao falso conceito dos
deuses, mas endereça-se ao homem e seu mau hábito de ver o mesmo em tudo, de
não se abrir ao conhecimento, à experiência da alteridade, sobretudo à alteridade
radical que os deuses representam em relação aos próprios homens. Mas para falar
do homem e do seu modo de ver o outro, Xenófanes não fala do que o homem é ou
não é, sua essência e seus predicados. Muito menos vai Xenófanes falar do que não
sabe, isto é, de como são os deuses ou como devem ser. O pensador não tem um
discurso categorial sobre determinado sujeito ou sobre determinado objeto de
conhecimento. Xenófanes, por outra via não menos racional e reflexiva, nos põe
diante de uma cena absurda : leões pintando leões, cavalos cantando hinos a
cavalos, bois adorando estátuas de bois. Absurda e cômica cena em que os animais
imitam o modo de ser dos homens quando estes retratam os deuses como a si
mesmos. O esquema retórico está todo fundado na relação mimética. Mímese que
acontece em dois níveis : primeiro e explícito, o modo como cada bicho ou cada
espécie representa seus deuses como eles mesmos; segundo e implícito nível,
quem se imita a si mesmo ao representar o sagrado somos nós os homens. Resulta
que o absurdo e rídiculo das imagens dos bichos faz com que reparemos naquilo
que fazemos sem pensar, e que no fim das contas não é menos ridículo e absurdo.
Homens que pintam figuras de homens e mulheres, ou que esculpem figuras de
mulheres e homens, e que fazem hinos e preces como se se dirigissem a outros
homens ou mulheres, mas que por serem considerados imortais e mais poderosos
chamam de deuses e deusas.
<br>
Esse esquema revelador da ignorância e estupidez dos homens é recorrente
na poesia e sabedoria satírica de Xenófanes, tal como aparece também no
Os etíopes são negros de nariz chato
os trácios de olhos verdes e ruivos.14
E aparece também em um dos fragmentos conservados do comediógrafo Epicarmo:
θαυμαστὸν οὐδὲν ἁμὲ ταῦθ' οὕτω λέγειν
καὶ ἁνδάνειν αὐτοῖσιν αὐτοὺς καὶ δοκεῖν
καλὼς πεφύκειν· καὶ γὰρ ἁ κύων κυνὶ
14 O dístico é uma reconstrução de Diels, parafraseando Clemente.
κάλλιστον εἶμεν φαίνεται καὶ βοῦς βοΐ,
ὄνος δ' ὄνῳ κάλλιστον, ὗς δέ θην ὑί.” (DK 23 B 5)
Nada espantoso que nós assim falemos
e regozijemos de nós e nos orgulhemos
naturalmente de nós mesmos; também para o cão
nada mais belo que o cão, e assim o boi parece ao boi,
para o asno o asno é lindo, para o porco o porco é mais.
A eficácia do discurso cômico e mimético é notável, a comparação é muito mais
eloquente do que qualquer demonstração, e não é preciso nenhuma inteligência sutil
para entender o recado. Não há melhor retórica para se falar às praças; e é por isso
que um discurso de Lula recheado de metáforas futebolísticas diz efetivamente mais
ao coração e à inteligência do que um pronunciamento técnico de Dilma. Não é
porque o vocabulário simples seja mais próximo das ruas, não se trata de uma
característica de ordem semântica. Nem tampouco é porque as imagens sejam de
mais fácil reconhecimento do que os conceitos técnicos, por mais que estes últimos
tenham usualmente muito poder de ocultar as coisas. Acredito que a principal
explicação está no fato de que o esquema cognitivo da mímese e da metáfora é
capaz de transportar o pensamento para outra perspectiva, e de transportar uma
ocorrência comum para uma situação incomum ou paradoxal e assim também é
capaz de abrir um conhecimento novo e mesmo inesperado. <br>
Que essa retórica sapiencial é perfeita para dirigir-se à praça, parece
evidente, mas a hipótese que quero levantar vai além, pois acredito que esse
modelo retórico baseado na mímese e na comparação também tem origem nas
praças, em uma certa sabedoria das hordas populares que invadem as ruas, e que
talvez tenham uma inteligência própria não negligenciável. Esta inteligência e sua
expressão são características de fenômenos de caráter dionisíaco, como a Komé, a
procissão que celebra o deus, os corsos, os blocos de rua, os desfiles de carnaval.
Gostaria de reler o fragmento 15 de Xenófanes tendo em vista estes fenômenos e
reparar em certas semelhanças nos seus modos de expressão. Estas semelhanças
poderiam sinalizar uma relação real entre a sabedoria do filósofo, sua crítica aos
homens e seus costumes religiosos, e uma sabedoria presente em outros modos de
relacionamento entre deuses e homens.
No fragmento de Xenófanes os animais são representações caricaturais dos
homens. Bois, cavalos e leões são os artistas que representam os deuses como
bois, cavalos e leões. Assim como os homens representam os deuses em figuras e
gestas antropomórficas. Essa crítica aos artistas e poetas que instauram as
narrativas e imagens cultuadas nos ritos tradicionais vai ocupar os primeiros
filósofos até Platão, que os vai expulsar da cidade justa. É uma evidente crítica a
poesia mimética. Todavia, e isso é particularmente genial, a crítica ao mimetismo
dos homens é feita com uma reflexão igualmente mimética, como já reparamos.
Significa que o poeta Xenófanes não sai do esquema mimético para criticá-lo, mas
ao contrário, aprofunda-o deliberadamente. É o absurdo mimetismo dos animais que
evidencia esta ignorância e vaidade humana que insiste em representar os deuses
com formas humanas. É o uso evidente da máscara que mostra que a máscara é
máscara e não o próprio real.
<br>
A evidência da máscara desmascara as falsas
representações dos deuses.
É como se no fragmento de Xenófanes, vissemos desfilar não os próprios
animais, mas um bloco de homens fantasiados de bois, cavalos e leões, que se
fazem passar por deuses. É o carnaval de Xenófanes que ri dos homens e dos seus
autoenganos. Mas o carnaval, a festa da máscara, da mímese e da representação é,
como sabemos, um outro rito que celebra também um outro deus. Não um deus
avesso às imagens e representações como o deus do Êxodo, mas o deus de todas
as imagens, das imagens como imagens, o deus das máscaras que é Dioniso.
Dioniso, o deus da contínua transmutação, que não se assenta em uma única figura,
uma única imagem, um substrato único, mas perpassa várias formas divinas e
humanas, animais e vegetais, que nascem, morrem e renascem. O deus dos ciclos
de destruição e renovação cuja expressão sapiencial acompanha, na forma retórica
relacional da comparação e da imitação, a variação das faces sazonais dos seres
vivos e da natureza, assim como a festa em que a multidão desfila pelas ruas com
suas máscaras desmascarando ilusões no carnaval.
Mas por que a komé, o corso popular dionisíaco estaria vestindo
propriamente essas fantasias do poema satírico de Xenófanes : máscaras de bois,
cavalos e leões? A escolha desses animais sempre me intrigou. A experiência com
o carnaval e as suas máscaras inspirou-me uma hipótese, que gostaria de compartir
<br>
Que máscaras fazem sucesso no carnaval? Quais são as máscaras mais
vendidas nas ruas? As máscaras das celebridades, dos famosos, dos homens de
destaque, cuja imagem é caricaturada na inversão social e política das festividades
dionisíacas. O povo veste as máscaras de Barack Obama, de Osama Bin Laden, de
Joaquim Barbosa, de José Dirceu. E aproveita para satirizar, e criticar pela
ridicularização, os atos que tiveram grande repercussão política e social. Não
apenas os atos recrimináveis, mesmo se foram atos vantajosos à cidade e ao
mundo, há sempre um carater altivo e vaidoso nas grandes personalidades que o
corso popular inverte e ridiculariza. Então por que as máscaras de bois, cavalos e
Acredito que os animais escolhidos não aparecem à toa, mas representam
cada um as classes poderosas das poleis : são animais associados à aristocracia,
homens poderosos que possuem terras e criam gado, guerreiros que andam a
cavalo na paz e na guerra, tiranos vorazes como leões. Estes, ainda mais do que os
outros homens, são vaidosos e comparam-se aos deuses, dos quais se dizem
próximos, parentes, descendentes. Nesta perspectiva, a crítica a Homero não teria
apenas o caráter da incompreensão teológica do antropomorfismo, mas seria
também uma crítica à arrogância dos valores aristocráticos transmitidos nestes seus
poemas épicos que celebram os grandes herois dos ciclos guerreiros. Por este
caminho, faz muito sentido que os deuses agrários e ctonicos, os deuses dos
mistérios eleusinos e do cortejo dionisíaco venham nas festividades de renovação,
nas leneias ou no carnaval, destronar os herois aristocratas celebrados na poesia
épica. A comédia e a tragédia são os testemunhos escritos dessa reversão da
aristocracia, ridicularizada numa e amaldiçoada noutra. Nos festivais do carnaval, a
poesia épica é escurraçada a bastonadas e ganham as ruas as hordas populares
embriagadas e delirantes, travestidas com a eloquência de suas máscaras satíricas.
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