Poesia e história. Mito trágico e mito tradicional. Particular e universal. Piedade e terror. Surpreendente e maravilhoso.
50. Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício de poeta
narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer
dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não
diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois que bem
poderiam ser postos em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de
ser história, se fossem em verso o que eram em prosa) — diferem, sim, em que diz
um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é
algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela
principalmente o universal, e esta o particular. Por "referir-se ao universal" entendo
eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamentos e ações que, por
liame de necessidade e verossimilhança, convém a tal natureza; e ao universal, assim
entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes às suas personagens; particular, pelo
contrário, é o que fez Alcibíades ou o que lhe aconteceu.
51. Quanto à comédia, já ficou demonstrado [este caráter universal da
poesia]; porque os comediógrafos, compondo a fábula segundo a verossimilhança,
atribuem depois às personagens os nomes que lhes parece, e não fazem como os
poetas jâmbicos, que se referem a indivíduos particulares.
52. Mas na tragédia mantêm-se os nomes já existentes. A razão é a seguinte:
o que é possível é plausível; ora, enquanto as coisas não acontecem, não estamos
dispostos a crer que elas sejam possíveis, mas é claro que são possíveis aquelas que
aconteceram, pois não teriam acontecido se não fossem possíveis.
53. Todavia, sucede também que em algumas tragédias são conhecidos os
nomes de uma ou duas personagens, sendo os outros inventados; em outras
tragédias nenhum nome é conhecido, como no Anteu de Agatão. em que são
fictícios tanto os nomes como os fatos, o que não impede que igualmente agrade.
Pelo que não é necessário seguir à risca os mitos tradicionais donde são extraídas as
nossas tragédias; pois seria ridícula fidelidade tal, quando é certo que ainda as coisas
conhecidas são conhecidas de poucos, e contudo agradam elas a todos igualmente.
54. Daqui claramente se segue que o poeta deve ser mais fabulador que
versificador; porque ele é poeta pela imitação e porque imita ações. E ainda que lhe
aconteça fazer uso de sucessos reais, nem por isso deixa de ser poeta, pois nada
impede que algumas das coisas que realmente acontecem sejam, por natureza,
verossímeis e possíveis e, por isso mesmo, venha o poeta a ser o autor delas.
55. Dos mitos e ações simples, os episódicos são os piores. Digo "episódico"
o mito em que a relação entre um e outro episódio não é necessária nem verossímil.
Tais são os mitos de maus poetas, por [imperícia] deles, e às vezes de bons poetas,
por [condescendência com os] atores. É que, para compor partes declamatórias,
chegam a forçar a fábula para além dos próprios limites e a romper o nexo da ação.
56. Como, porém, a tragédia não só é imitação de uma ação completa, como
também de casos que suscitam o terror e a piedade, e estas emoções se manifestam
principalmente quando se nos deparam ações paradoxais, e, perante casos
semelhantes, maior é o espanto que ante os feitos do acaso e da fortuna (porque,
ainda entre os eventos fortuitos, mais maravilhosos parecem os que se nos
afiguram acontecidos de propósito — tal é, por exemplo, o caso da estátua de Mítis
em Argos, que matou, caindo-lhe em cima, o próprio causador da morte de Mítis,
no momento em que a olhava —, pois fatos semelhantes não parecem devidos ao
mero acaso), daqui se segue serem indubitavelmente os melhores os mitos assim
concebidos.
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