sexta-feira, 17 de abril de 2015

Poética, de Aristóteles - Capitulo 9



Poesia e história. Mito trágico e mito tradicional. Particular e universal. Piedade e terror. Surpreendente e maravilhoso. 

50. Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postos em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa) — diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular. Por "referir-se ao universal" entendo eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamentos e ações que, por liame de necessidade e verossimilhança, convém a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes às suas personagens; particular, pelo contrário, é o que fez Alcibíades ou o que lhe aconteceu. 

51. Quanto à comédia, já ficou demonstrado [este caráter universal da poesia]; porque os comediógrafos, compondo a fábula segundo a verossimilhança, atribuem depois às personagens os nomes que lhes parece, e não fazem como os poetas jâmbicos, que se referem a indivíduos particulares. 

52. Mas na tragédia mantêm-se os nomes já existentes. A razão é a seguinte: o que é possível é plausível; ora, enquanto as coisas não acontecem, não estamos dispostos a crer que elas sejam possíveis, mas é claro que são possíveis aquelas que aconteceram, pois não teriam acontecido se não fossem possíveis. 

53. Todavia, sucede também que em algumas tragédias são conhecidos os nomes de uma ou duas personagens, sendo os outros inventados; em outras tragédias nenhum nome é conhecido, como no Anteu de Agatão. em que são fictícios tanto os nomes como os fatos, o que não impede que igualmente agrade. Pelo que não é necessário seguir à risca os mitos tradicionais donde são extraídas as nossas tragédias; pois seria ridícula fidelidade tal, quando é certo que ainda as coisas conhecidas são conhecidas de poucos, e contudo agradam elas a todos igualmente. 

54. Daqui claramente se segue que o poeta deve ser mais fabulador que versificador; porque ele é poeta pela imitação e porque imita ações. E ainda que lhe aconteça fazer uso de sucessos reais, nem por isso deixa de ser poeta, pois nada impede que algumas das coisas que realmente acontecem sejam, por natureza, verossímeis e possíveis e, por isso mesmo, venha o poeta a ser o autor delas. 

55. Dos mitos e ações simples, os episódicos são os piores. Digo "episódico" o mito em que a relação entre um e outro episódio não é necessária nem verossímil. Tais são os mitos de maus poetas, por [imperícia] deles, e às vezes de bons poetas, por [condescendência com os] atores. É que, para compor partes declamatórias, chegam a forçar a fábula para além dos próprios limites e a romper o nexo da ação. 56. Como, porém, a tragédia não só é imitação de uma ação completa, como também de casos que suscitam o terror e a piedade, e estas emoções se manifestam principalmente quando se nos deparam ações paradoxais, e, perante casos semelhantes, maior é o espanto que ante os feitos do acaso e da fortuna (porque, ainda entre os eventos fortuitos, mais maravilhosos parecem os que se nos afiguram acontecidos de propósito — tal é, por exemplo, o caso da estátua de Mítis em Argos, que matou, caindo-lhe em cima, o próprio causador da morte de Mítis, no momento em que a olhava —, pois fatos semelhantes não parecem devidos ao mero acaso), daqui se segue serem indubitavelmente os melhores os mitos assim concebidos.


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