PARMENIDES, XENÓFANES E EMPEDOCLES - O Professor Fernando Santoro vai servir um verdadeiro banquete filosófico para seus alunos do segundo semestre de 2016. Para a matéria História da Filosofia Antiga I ele vai trabalhar com seus alunos a obra e a vida dos filósofos épicos. É um mundo fascinante de ideias e conceitos que o Professor Santoro conhece muito bem, já que é um estudioso do assunto e até escreveu sobre o tema no livro Filósofos Épicos I: Parmênides e Xenófanes, fragmentos.
O livro com edição do texto grego, revisão e comentários do Professor Santoro está disponível na internet em PDF. Clique AQUI Já no prefácio do livro Santoro escreve sobre os filósofos poetas, já que o saber advindo de suas ideias surgiu através dos poemas cujos fragmentos nos apresenta uma enorme gama de elementos para reflexões filosóficas.
OS FILÓSOFOS POETAS
A filosofia surge, na Grécia, em meio a um fecundo diálogo e uma calorosa disputa entre valores e formas de conhecimento. Diálogo e disputa que são entretidos com as formas tradicionais de educar e conhecer, sobretudo a poesia épica, mas também a poesia lírica, a órfica, a trágica, as tradições oraculares e outras formas de expressão e de linguagem. Os primeiros filósofos nascem diretamente destas tradições discursivas, e muitas vezes mantêm elementos formais e também conteúdos similares a esta origem – ao mesmo tempo em que frequentemente assumem uma posição de distanciamento e confronto face às mesmas. Uma longa tradição, que já vem desde os comentadores alexandrinos, passando pela edição de Stephanus da
Poiesis Philosophica
(1573) até a grande compilação de filósofos arcaicos de Friedrich Wilhelm August Mullach
Fragmenta Philosophorum Graecorum
(1860) seguida da coletânea de Hermann Diels
Poetarum Philosophorum Fragmenta
(1901), vinculou fortemente os primeiros filósofos a suas origens poéticas, tanto que os denominava “Poetas Filósofos”. Esta denominação tinha em geral, porém, uma conotação pejorativa, de viés positivista: tratavam-se ainda de protofilósofos, pensadores que falavam por meio de alegorias, porque não teriam ainda desenvolvido a linguagem madura da filosofia e da ciência. Somente com a obra maior de Hermann Diels, Die Fragmente der Vorsokratiker, a partir do início do séc. XX com contínuas revisões feitas por ele e Walter Kranz até 1952, estes filósofos passaram a ser denominados canonicamente como “filósofos pré-socráticos”. Contudo, o tom de classificá-los com aspirantes à filosofia não se alterou, visto que ser anterior Sócrates ainda é visto como anterior ao paradigma clássico da filosofia. Mas ressoa ainda, por todo o séc. XX, a relação que Nietzsche lhes imprimiu com a poesia trágica, desfazendo o preconceito positivista que vê a ciência como uma superação dos mitos e da poesia. De fato, a filosofia dos primeiros filósofos faz parte de uma grande transformação criativa da linguagem, da cultura, das instituições que se interpenetram e influenciam. A filosofia não supera a poesia, mas concorre entre as diversas formas de pensamento e expressão para o diverso desempenho criador do conhecimento, da cultura e da civilização. A relação da filosofia com a poesia, na Magna Grécia dos séc. VI e V a.C., não é somente uma relação exterior, de recíproca influência e de empréstimos de recursos expressivos ou formatos discursivos. Com efeito, a filosofia surge originalmente, como um gênero de poesia sapiencial, e merece ser pensada neste limiar em que confluem literatura, retórica, pensamento e conhecimento. Com os filósofos épicos exploramos as potencialidades criativas deste limiar, a partir da ecdótica dos textos gregos e das traduções, abrindo caminho para uma análise discursiva de suas formas originais de expressão e, principalmente, para a discussão filosófica dos seus conteúdos e temas. Chamamos de ‘épicos’, filósofos como Xenófanes, Parmênides e Empédocles. Filósofos que compuseram, entre suas obras, poemas/tratados sobre a natureza (
perì phýseos
). São
épicos
segundo uma abordagem que diz respeito ao estatuto das formas e conteúdos da filosofia em seus primórdios, face aos demais discursos sapienciais e formas de expressão coetâneos, particularmente os poemas de tradição homérica. Destaquemos quatro aspectos dos Filósofos Épicos, es-boçados aqui cada um em separado, como um programa de investigação. Cada um delimita um conjunto que aproxima de seus textos outros textos de formas afins dentro do campo da literatura sapiencial grega, criando zonas de fronteira que se cruzam sem se sobrepor.
A determinação como “physikói” e “physiólogoi”
Aristóteles, no primeiro livro da Metafísica (982a), nomeia os seus predecessores, estes que trataram dos primeiros princípios e causas, simplesmente, de “
sophói
” ou “
philóso- phoi
”, diferenciando-os dos poetas, que ele chama também de “
theólogoi
”. No primeiro livro de sua Física, Aristóteles ocupa-se de discutir as principais teses ontológicas dos eleatas, para estabelecer o seu próprio conceito de
phýsis
(natureza) como princípio de movimento. Assim, o Estagirita estabelece a perspectiva para abordar Xenófanes e Parmênides como filósofos que tratam da natureza. O título que seus tratados irão(posteriormente) receber: “
Acerca da Natureza
” (
Perì Phýseos
deve-se a esta perspectiva, a qual também vai dirigir a obra que, por muito tempo, foi o lugar de divulgação destes trata-dos: a compilação, empreendida por Teofrasto, das opiniões dos filósofos da natureza “
Physikôn Dóxai
”. O problema aqui pode abrir-se por várias portas: uma primeira é em que medida a abordagem do tema dos princípios como um problema que diz respeito à
phýsis
é um marco de origem da filosofia; outra é acerca da determinação do próprio sentido de natureza, e sua dependência da perspectiva aristotélica.
A discussão acerca do método
Xenófanes, particularmente no fragmento DK 21 B 34, e Parmênides na primeira parte do poema (os fragmentos DK28 B1 até B6, pelo menos) têm como objeto de reflexão o próprio conhecimento, seus caminhos, desvios e limitações. Assim, seus tratados acerca da natureza englobam também o que poderíamos considerar como discussões preliminares metodológicas acerca do estatuto da verdade e das opiniões. Talvez essa seja uma das principais características da nascente filosofia: não apenas buscar a expressão de verdades, mas refletir sobre a própria condição da verdade. Isso os diferencia dos discursos sapienciais tradicionais, tais como na poesia épica de Hesíodo e Homero, mesmo quando esta versa a respeito de sua inspiração pelas musas. A reflexão sobre o estatuto do conhecimento diferencia-os também dos contextos rituais de revelação e interpretação, tal como os oráculos. Por outro lado, Parmênides e Xenófanes não opõem ao verdadeiro o falso, mas as opiniões. Isso aponta para uma diferença em relação às compreensões clássicas de verdade como adequação, que se vão consolidar em Platão e, principalmente, na discussão aristotélica sobre o discurso apofânti-co (declarativo, demonstrativo). Com relação ao estatuto do conhecimento, Xenófanes, Parmênides e Empédocles estão na fronteira de um mundo em transformação, e conservam de modo rico e refletido elementos das experiências tradicionais de inspiração e revelação ao mesmo tempo em que apresentam um ímpeto de investigação da natureza e um cuidado de explicação dos fenômenos que já os projeta como homens de ciência e filosofia.
Cosmologia, teologia e outras ciências
Os tratados acerca da natureza de Xenófanes e Parmênides expõem uma visão do cosmos com aspectos astronômicos, geográficos, biológicos etc. de particular interesse para a história das ciências e para uma reflexãoepistemológica em geral. A compreensão desta visão do cosmos é também decisiva para a reflexão sobre o sentido da chamada “segunda parte” do Poema de Parmênides e para a consideração do estatuto do conhecimento humano e das “opiniões dos mortais”. Neste contexto, também é significativo o problema do estatuto ontológico dos deuses, seu lugar na cosmovisão dos poetas filósofos, e a crítica a como os homens os compreendem e se relacionam com eles – que aparece não apenas nos fragmentos dos tratados acerca da natureza dos pré-socráticos em geral, mas também particularmente nos fragmentos satíricos (
Sílloi
) de Xenófanes. Convivem, mas não sem conflitos, discursos teogônicos e cosmogônicos. Ao mesmo tempo em que podemos vislumbrar catálogos de deuses, encontramos a crítica às concepções teológicas tradicionais, sobretudo quanto ao seu antropomorfismo. Esta crítica está no coração das considerações sobre a opinião, a nomeação, o engano e tudo o que se pode enquadrar dentro da perspectiva de uma experiência humana repleta de limitações. Neste sentido, os textos também são potencialmente ricos de uma antropologia filosófica.
(Fernando Santoro)
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