domingo, 22 de maio de 2016

Carta de Epicuro a Herodoto (Fragmento)



Para aqueles, oh Heródoto, que não podem ter um conhecimento perfeitamente exato de cada um de meus escritos sobre a Natureza, e estudar a fundo os principais livros, maiores, que escrevi, fiz um resumo de toda minha obra que permite reter mais facilmente as principais teorias. Poderão, assim, evitar ter que fazê-lo, eles mesmos, com minhas idéias principais na medida em que se interessam pela Natureza. De outro modo, os que já conhecem a fundo minhas obras completas, necessitam ter presentes na memória as linhas gerais de minha doutrina; muitas vezes temos mais necessidade de um resumo que de conhecimento particular dos detalhes. 

Há que avançar passo a passo, retendo constantemente o conjunto da doutrina para compreender bem seus detalhes. Esse duplo efeito será possível se forem bem compreendidas e se o reterem em sua verdadeira formulação as idéias essenciais, e se as aplica seguido aos elementos, às idéias particulares e às essenciais. Conhece a fundo a doutrina quem pode obter partido rapidamente das idéias gerais. Pois é impossível colocar em seu completo desenvolvimento a totalidade de minha obra se és incapaz de resumir para si mesmo e em poucas palavras o conjunto daquilo que se quer aprofundar particularmente, detalhe a detalhe. Já que este método resulta útil para todos que estudam seri-amente a física, aconselho a todos os homens decididos, que se entregam assiduamente ao estudo, e que buscam nele o meio de obter tranquilidade na vida, que façam um resumo similar do conjunto de minhas teorias. 

Há que começar, Herodoto, por conhecer o que se oculta nas palavras essenciais, a fim de poder, relacionando-as com as coisas mesmas, formular juízo sobre nossas opiniões, nossas idéias e nossas dúvidas. Deste modo, não corremos o risco de discutir até o infinito sem resultados e de pronunciar palavras vazias. Com efeito, é necessário estudar primeiramente o sentido de cada palavra, para não ter necessidade de um excesso de demonstrações, quando discutimos nossas perguntas, nossas idéias e nossas dúvidas. Depois há que se observar todas as coisas, confrontando-as com as sensações e, de modo geral, com as intuições do espírito ou qualquer outro critério. Igualmente pelo que diz respeito às nossas afeições presentes, para poder julgar segundo os signos dos objetos de nossa atenção e os objetos ocultos. Quando já se viu tudo isso, se está preparado para estudar as coisas invisíveis, em primeiro lugar, podendo dizer que nada nasce do nada, já que as coisas não tiveram necessidade de semente, tudo poderia nascer de tudo. 

De outra forma, se o que desaparece volta ao nada, todas as coisas pereceriam, já que não poderiam converter-se em mais que nada, do que resulta que no universo tenha sido sempre e será sempre o que é atualmente, já que não há nenhuma coisa em que se possa converter, e tampouco há, fora do universo, nada que possa atuar sobre ele para provocar uma troca. O universo está formado por corpos. Sua existência é mais que suficientemente provada pela sensação, pois é ela, repito, a que sere de base ao raciocínio sobre as coisas invisíveis. Se o que chamamos de vazio, a extensão, a essência intangível, não existisse, não haveria lugar em que os corpos poderiam mover-se; como efeito, vemos que se mo-vem. À margem destas duas coisas não se pode compreender nada, nem por intuição, nem por analogia com os dados da intuição – de que existe como uma natureza completa, já que não estou falando de acontecimentos fortuitos ou de aci-dentes. Entre os corpos, uns são compostos, outros são os elementos que servem para fazer os compostos. Estes últimos são os átomos indivisíveis e imutáveis, já que nada pode converter-se em nada e é necessário que subsistam realidades quando os compostos se desagregam. Estes corpos estão completos por natureza e não têm neles lugar nem meio pelo qual poderão se pode destruir. 

Do que resulta que tais elementos de-vem ser, necessariamente, as partes indivisíveis dos corpos. Ademais, o universo é infinito. Em efeito, o que é finito tem um extremo e o extremo se descobre por comparação com o outro. Assim que, necessitando de extremo, não tem, em ab-soluto, fim: e não tendo fim, é necessariamente infinito e não finito. O universo é infinito desde dois pontos de vista: pelo número de corpos que contém e pela imensidão de vazio que contém. . Se o vazio fosse infinito e o número de corpos limitado, estes se dispersariam em desordem pelo vazio infinito, já que não haveria nada para sustentá-los e nada para uni-los às coisas. E se o vazio fosse limitado e o número de corpos infinito, não haveria lugar onde poderiam se instalar. 

De outra forma, os corpos completos e indivisíveis, dos que estão formados, e nos que se resolvem nos compostos, apre-sentam formas tão diversas que não podemos conhecer seu número, já que não é possível que tantas formas diferentes provenham de um número limitado e compreensível de figuras semelhantes. Ademais, cada figura apresenta um número infinito de exemplares, porém, pelo que diz respeito à sua diferença, tais figuras não alcançam um número absolutamente ilimitado. Seu número é, simplesmente, incalculável. Ade-mais, os átomos estão animados de movimento perpétuo. Uns estão separados por grandes intervalos; outros, pelo contrário, conservam seu impulso todas as vezes que são desviados, unindo-se a outros e convertendo-se nas partes de um composto. É a consequência da natureza do vazio, incapaz por si mesma de imobilizá-los. De outro modo, sua inerente solidez os faz ressaltar em cada choque, ao menos na medi-da em que sua integração em um composto lhes permita ressaltar logo após um choque. O movimento dos átomos não teve começo, já que átomos são eternos como o vazio. De outra forma, há uma infinidade de mundos, sejam parecidos com o nosso, sejam diferentes. Em efeito, sendo os átomos infinitos, como se acaba de demonstrar, são levados por seu movimento até os lugares mais longes. E tais átomos, que por sua natureza servem, já por si mesmos, por sua ação, para criar um mundo, não podem ser utilizados todos para formar um único mundo, ou um número limitado de mundos, nem para os semelhantes a esse, nem para os diferentes, de modo que nada impede que exista uma infinidade de mundos.


domingo, 1 de maio de 2016

Carta a Meneceu




Epicuro a Meneceu, saudações. 

Que nenhum jovem adie o estudo da filosofia, e que nenhum velho se canse dela; pois nunca é demasiado cedo nem demasiado tarde para cuidar do bem-estar da alma. O homem que diz que o tempo para este estudo ainda não chegou ou já passou é como o homem que diz que é demasiado cedo ou demasiado tarde para a felicidade. Logo, tanto o jovem como o velho devem estudar filosofia, o primeiro para que à medida que envelhece possa mesmo assim manter a felicidade da juventude nas suas memórias agradáveis do passado, o último para que apesar de ser velho possa ao mesmo tempo ser jovem em virtude da sua intrepidez perante o futuro. Temos portanto de estudar o meio de assegurar a felicidade, visto que se a tivermos, temos tudo, mas se não a tivermos, fazemos tudo para a obter. Pratica e estuda sem cessar aquilo que estava sempre a ensinar-te, tendo a certeza de que estes são os primeiros princípios da vida boa. 
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Depois de aceitar deus como o ser imortal e bem aventurado descrito pela opinião popular, nada mais lhe atribuas que seja estranho à sua imortalidade ou à sua bem-aventurança, mas antes acredita acerca dele seja o que for que possa sustentar a sua imortalidade bem-aventurada. Os deuses existem realmente, pois a nossa percepção deles é clara; mas não são como a multidão os imagina, pois a maior parte dos homens não retêm a imagem dos deuses que primeiro recebem. Não é o homem que destrói os deuses da crença popular que é ímpio, mas antes quem descreve os deuses nos termos aceites pela multidão. Pois as opiniões da multidão sobre os deuses não são percepções mas antes falsas suposições. De acordo com estas superstições populares, os deuses enviam grandes males aos perversos, e grandes bem-aventuranças aos íntegros, pois, sendo sempre favoráveis às suas próprias virtudes, aprovam quem é como eles, encarando como estranho tudo o que é diferente. Habitua-te à crença de que a morte não nos diz respeito, dado que todo o mal e todo o bem assentam na sensação e a sensação acaba com a morte. Logo, a crença verdadeira de que a morte nada é para nós faz uma vida mortal feliz, não ao acrescentar-lhe um tempo infinito, mas ao eliminar o desejo de imortalidade. Pois não há razão para que o homem que tem plena certeza de que nada há a recear na morte encontre algo que recear na vida. Assim, também é tolo quem diz que receia a morte não por ser dolorosa quando chegar mas por ser dolorosa a sua antecipação; pois o que não é um peso quando está presente é doloroso sem razão quando é antecipado. 
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 A morte, o mais temido dos males, não nos diz consequentemente respeito; pois enquanto existimos a morte não está presente, e quando a morte está presente nós já não existimos. Nada é portanto nem para os vivos nem para os mortos visto que não está presente nos vivos, e os mortos já não são. Mas os homens em geral por vezes fogem da morte como o maior dos males, por vezes almejam-na como um alívio para os males da vida. O homem sábio nem renuncia à vida nem receia o seu fim; pois a vida não o ofende, nem supõe que não viver é de algum modo um mal. Tal como não escolhe a comida da qual há maior quantidade mas a que é mais agradável, também não procura a satisfação da vida mais longa mas sim a da mais feliz. Quem aconselha o jovem a viver bem e o velho a morrer bem é tolo não apenas porque a vida é desejável, mas também porque a arte de viver bem e a arte de morrer bem são uma só. Contudo, muito pior é quem diz que é bom não ter nascido mas, uma vez nascido, que o melhor é passar depressa pelos portões do Hades. Se um homem diz isto e realmente acredita nisto, por que razão não se retira da vida? Certamente que os meios estão à mão se for realmente essa a sua convicção. Se o diz a zombar, é visto como um tolo entre quem não aceita o seu ensinamento. Lembra-te que o futuro nem é nosso nem é completamente não nosso, de modo que nem podemos contar que virá de certeza nem podemos abandonar a esperança nele com a certeza de que não virá. Tens de considerar que alguns desejos são naturais, outros vãos, e dos que são naturais alguns são necessários e outros apenas naturais. 
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 Dos desejos naturais, alguns são necessários para a felicidade, alguns para o bem-estar do corpo, alguns para a própria vida. O homem que tem um conhecimento perfeito disto saberá como fazer toda a sua escolha ou rejeição tender para ganhar saúde do corpo e paz de espírito, dado que este é o fim último da vida bem-aventurada. Pois para alcançar este fim, nomeadamente a libertação da dor e do medo, fazemos tudo. Quando se atinge esta condição, toda a tempestade da alma sossega, dado que a criatura nada mais precisa de fazer para procurar algo que lhe falte, nem de procurar qualquer outra coisa para completar o bem-estar da alma e do corpo. Pois só sentimos a falta de prazer quando sentimos dor com a sua ausência; mas quando não sentimos dor já não precisamos de prazer. Por esta razão, dizemos que o prazer é o princípio e o fim da vida bem-aventurada. Reconhecemos o prazer como o bem primeiro e natural; partindo do prazer, aceitamos ou rejeitamos; e regressamos a isto ao ajuizar toda a coisa boa, usando este sentimento de prazer como o nosso guia. Precisamente porque o prazer é o bem principal e natural, não escolhemos todo o prazer, mas por vezes abstemo-nos de prazeres se estes forem cancelados pelas privações que se seguem; e consideramos muitas dores melhores do que prazeres quando um maior prazer virá até nós depois de termos sofrido dores demoradas.
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Todo o prazer é um bem dado ter uma natureza congénere da nossa; contudo, nem todo o prazer deve ser escolhido. De igual modo, toda a dor é um mal, contudo nem toda a dor é de natureza a ser evitada em todas as ocasiões. Pesando e olhando para as vantagens e desvantagens, é apropriado decidir todas estas coisas; pois em certas circunstâncias tratamos o bem como mal e, igualmente, o mal como bem. Encaramos a auto-suficiência como um grande bem, não para que possamos desfrutar apenas de poucas coisas, mas para que, se não tivermos muitas, nos possamos satisfazer com as poucas, estando firmemente persuadidos de que quem retira o maior prazer do luxo é quem o encara como menos preciso, e que tudo o que é natural se obtém facilmente, ao passo que os prazeres vãos são difíceis de obter. Na verdade, temperos simples dão um prazer igual ao dos banquetes pródigos quando a dor devida à necessidade for removida; e pão e água dão o máximo prazer quando uma pessoa necessitada os consome.
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Estar acostumado à vida simples e básica conduz à saúde e faz um homem ficar pronto a enfrentar as tarefas necessárias da vida. Prepara-nos também melhor para usufruir o luxo se por vezes tivermos a sorte de o encontrar, e faz-nos intrépidos face à fortuna. Quando dizemos que o prazer é o fim, não queremos dizer o prazer do extravagante ou o que depende da satisfação física — como pensam algumas pessoas que não compreendem os nossos ensinamentos, discordam deles ou os interpretam malevolamente — mas por prazer queremos dizer o estado em que o corpo se libertou da dor e a mente da ansiedade. Nem beber e dançar continuamente, nem o amor sexual, nem a fruição de peixe ou seja o que for que a mesa luxuosa oferece gera a vida agradável; ao invés, esta é produzida pela razão que é sóbria, que examina o motivo de toda a escolha e rejeição, e que afasta todas aquelas opiniões através das quais a mente fica dominada pelo maior tumulto. De tudo isto o bem inicial e principal é a prudência. Por esta razão, a prudência é mais preciosa do que a própria filosofia. Todas as outras virtudes nascem dela.
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Ensina-nos que não é possível viver agradavelmente sem ao mesmo tempo viver prudentemente, nobremente e justamente, nem viver prudentemente, nobremente e justamente sem viver agradavelmente; pois as virtudes cresceram em união íntima com a vida agradável, e a vida agradável não pode ser separada das virtudes. Quem pensas então que é superior ao homem prudente, que tem opiniões reverentes sobre os deuses, que não tem qualquer medo da morte, que descobriu qual é o maior bem da vida e que compreende que o mais alto bem é fácil de alcançar e manter e que o extremo do mal tem limites no tempo ou no sofrimento, e que se ri do que algumas pessoas inventaram como a regente de todas as coisas, a Necessidade? Ele pensa que o poder de decisão principal nos cabe a nós, apesar de algumas coisas surgirem por necessidade, algumas por acaso e algumas pelas nossas próprias vontades; pois ele vê que a necessidade é irresponsável e o acaso incerto, mas que as nossas acções não estão sujeitas a qualquer poder. É por esta razão que as nossas acções merecem louvor ou censura. Seria melhor aceitar o mito sobre os deuses do que ser um escravo do determinismo dos físicos; pois o mito sugere uma esperança de graça através das honras concedidas aos deuses, mas a necessidade do determinismo é inescapável. Visto que o homem prudente não encara, como muitos, o acaso como um deus (pois os deuses nada fazem de maneira desordenada) ou como uma causa instável de todas as coisas, acredita que o acaso não dá ao homem o bem e o mal para fazer a sua vida feliz ou miserável, mas que fornece oportunidades para grandes bens ou males.
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Finalmente, ele pensa que é melhor encontrar o infortúnio quando se age com razão do que calhar a ter boa fortuna ao agir insensatamente; pois é melhor não ocorrer o que foi bem planeado nas nossas acções do que ser bem-sucedido por acaso o que foi mal planeado. Medita nestes preceitos e noutros como estes, de dia e de noite, sozinho ou com um amigo da mesma opinião. Então nunca terás receio, de dia ou de noite; mas viverás como um deus entre os homens; pois a vida no seio de bem-aventuranças imortais não é de modo algum como a vida de um mero mortal.”
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Tradução de Desidério Murcho.
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