domingo, 10 de abril de 2016

A difícil lição do desapego




Aprender o destemor da morte é aprender a enfrentar cada perigo e cada obstáculo com a coragem e a determinação devidas. É também aprender a difícil lição do desapego: saber que a cada dia um dia se conquista e um dia se perde. (Trecho do livro "Arqueologia dos Prazeres", de Fernando Santoro)

Perfil de Epicuro




ARQUEOLOGIA DOS PRAZERES - No livro em que faz uma reflexão sobre o modo como os antigos gregos lidavam com o prazer, o Professor Fernando Santoro dedica um capítulo inteiro a Epicuro. Com sua leitura atenta e perspicaz do que restou do pensamento de Epicuro, e também do que se disse sobre ele, o Professor Santoro construiu um saboroso perfil desse ilustre pensador grego. 

Arqueologia dos Prazeres é uma publicação da Editora Objetiva e pode ser adquirido AQUI.  Leia logo abaixo o capítulo que trata de Epicuro. 







Epicuro

Talvez a simplicidade seja devida apenas ao fato de que a tradição textual que nos restou de Epicuro se encontre sobretudo no gênero epistolar; mas é sempre reconfortante ver a filosofia falar com os dois pés no chão. De fato, o que temos da teoria de Epicuro sobre o prazer encontra-se principalmente numa carta dirigida a Meneceu. Uma carta que propõe uma terapia filosófica para realizar a vida feliz. A filosofia de Epicuro está toda voltada para a felicidade: tanto a Fisiologia, o seu estudo da natureza, quanto o Cânon, a sua teoria da linguagem e do conhecimento, estão a serviço da cura filosófica dos males  que travam o exercício de uma vida feliz. Tudo que não está efetivamente voltado para este fim é adiável e dispensável, Epicuro abomina a polimatia, a erudição sem propósito, a aprendizagem excessiva que percorre todas as áreas da cultura e da ciência antes de chegar aos saberes que realmente importam. Mas aqueles saberes que transformam a vida e a tornam feliz, esses são urgentes, porque não se deve adiar a felicidade: a vida é curta, eterna é somente a morte que chega rápido e sem pedir licença.


“Que ninguém, jovem, tarde a filosofar, nem, ficando idoso, se canse da filosofia. Pois nunca é cedo demais  nem tarde demais para cuidar da saúde da alma.” (Carta a Meneceu)


O epicurismo é antes de tudo uma apurada atenção aos fins e à medida. A simplicidade é decorrência dessa postura, a objetividade na realização da vida feliz, também. O estudo da natureza é claramente orientado por estes valores: o atomismo é a perspectiva naturalista que, com a menor quantidade de elementos e causas, mais exprime o movimento, o vir-a-ser, as transformações, diferenças e relações dos entes. Epicuro resume os princípios da sua Fisiologia também em uma carta, dirigida a Heródoto. O seu atomismo é inspirado de Demócrito, mas Epicuro acrescenta um elemento novo, que o vai separar ainda mais das concepções dos estóicos e de todo determinismo, naturalista ou de qualquer outra ordem,


Os átomos, em seu movimento no vazio, declinam, desviam-se de sua trajetória retilínea em ângulos mínimos imprevisíveis. Esse é o aspecto mais obscuro da física de Epicuro, não apenas pelo problema do movimento em si mesmo, mas também pelo fato de que é um ponto da teoria que nos chegou de modo acentuadamente indireto, não constando nem nas cartas transcritas por Diógenes Laércio nem em alguma outra citação direta. Mas, com toda a problematicidade, é sem dúvida o aspecto mais genial da Fisiologia. A marca de um pensamento que submete a teoria aos fenômenos, e também que os impregna de valores primordiais. Se a existência do homem pode ser livre, é que há na natureza mesma uma causa da liberdade.  O fado não determina tudo: pela teoria dos mínimos desvios o acaso retoma um poder fundamental  nos acontecimentos do mundo.  Pelo acaso, geram-se mundos diferentes, diferentes ordenações e relações entre os corpos; pelo acaso, diferentes corpos são gerados dos aglomerados de átomos; pelo acaso o acidente é possível, a falha, o inusitado e o extraordinário. Porém, mais genial ainda, não se trata de uma força esporádica, de um contratempo da natureza, algo que no mais das vezes não é assim, como supõe a teoria aristotélica do acidente. A declinação dos átomos é constitutiva do movimento natural; de todo movimento natural. O acaso não acontece por acaso, o acaso está presente em todo movimento; ainda que o seu grau de atuação seja mínimo. Ainda que pequeno, sempre há desvio.




“O clinamen ou declinação não tem nada a ver  com um movimento oblíquo que viria por acaso modificar  uma queda vertical. Ele está presente o tempo todo:  não é um movimento secundário, nem mesmo uma segunda determinação do movimento do átomo, que aconteceria em um momento qualquer, em um lugar qualquer.” (Gilles Deleuze)


Mesmo para explicar os desvios e o acaso, a teoria requisita apenas mais uma causa, totalmente compatível e integrada às demais características da enxuta e moderada teoria atomista. A Natureza de Epicuro é uma engrenagem simples e completa, que inclui nela mesma o princípio da diferenciação e da proliferação dos corpos e dos arranjos de corpos, os também múltiplos mundos. Uma teoria que só não abre mão de corresponder aos desafios postos pela compreensão dos próprios fenômenos, que nunca são ordenados em linha reta. A natureza não semeia as estrelas em xadrez.


A Canônica, o método de conhecimento, também é dotada de objetividade e comedimento. O conhecimento provém dos sentidos, porque na sensação são os próprios corpos que se manifestam para nós e em relação a nós (pròs henás), emanações de simulacros (phantasta) que provêm de outros corpos. Os dois extremos do sentido devem articular: de um lado o fenômeno, que sempre é tal como se mostra; no outro extremo o movimento dos átomos, invisíveis mais necessários para compreender com simplicidade o que se passa no mundo perceptível.  A extremidade fenomênica é limitada pela evidência, a extremidade atômica, pela coerência. Do momento que consigo coerência na explicação do que a mim se mostra isto é suficiente para o conhecimento.  E, sobretudo, o conhecimento está a serviço da vida feliz, sua finalidade e utilidade está justamente em examinar aqueles pensamentos e fantasias que perturbam a alma, trazer a verdade até o ponto em que ela nos predispõe à serenidade.  Este é também o limite de extensão do conhecimento desejável para o ser humano, e o seu valor: conhecimento para a vida. Por isso, Epicuro valoriza mais a prudência do que a própria filosofia. O que importa não é o conhecimento absoluto ou desinteressado. Importa aprender a viver, saber alcançar a felicidade, descobrir como melhor sentir prazer.


O prazer, a realização de uma vida feliz, é um afeto (pathos) que corresponde a uma plenitude, determinada principalmente de modo negativo. Ausência de dores no corpo, entre as quais se inclui todo tipo de carência, que Epicuro identifica como causa dos desejos naturais, desejos do que é conforme à nossa natureza, do que nos é congênito (symphyton). Primeiro, suprir as carências naturais e aplacar as dores, também naturais, do corpo. Em seguida, desafogar as perturbações, todos os pensamentos e opiniões que nos enganam e provocam aflições vãs. Essa plenitude que se dá quando estão supridas as carências do corpo e aliviados os estorvos da alma, Epicuro chama de imperturbabilidade (ataraxia).


O fato de que a determinação primeira da ataraxia seja duplamente negativa não significa que seja um estado de indiferença ou de apatia. Acompanha a imperturbabilidade um estado de prazer, o gozo da vida saudável, a alma livre para pensar a verdade e partilha-la com os amigos. Para alcançar o estado de ataraxia, Epicuro sugere uma terapia especial: a ingestão de fármaco, uma droga poderosa capaz de reverter tanto as dores do corpo quanto as angústias da alma. Esta droga poderosa é a própria filosofia. Como toda droga, é preciso saber muito bem administra-la, sobretudo, é importante não errar na dose.









Tetrafármaco

 Droga filosófica é composta de quatro antídotos contra os quatro principais venenos que produzem ou aumentam a dor no corpo e os pesares na alma, por isso é chamada de tetrafármaco.


“Consequentemente, quem consideras que seja melhor do que aquele que tem uma venerada opinião sobre os deuses; e passando por tudo se mantem destemido diante da morte; que refletiu sobre a meta da natureza e que, de um lado, o limite dos bens é simples de alcançar e fácil de obter, enquanto, dos males, ou é curto o tempo ou o sofrimento.”


O primeiro ingrediente é ministrado pela filosofia desde que ela surgiu, à medida que se insurgia contra os mitos dos poetas e as concepções correntes de idealização e imaginação dos deuses. Os homens tem dois tipos de acepção dos deuses, a primeira é a noção comum, a prenoção (prolepsis) que resulta de uma evidência. Esta define os deuses como viventes imortais e bem-aventurados. Nisto não incorrem em erro, porque nesta prenoção não dizemos dos deuses nem que existem nem como; a prenoção apenas abre o sentido de uma questão. Mas quando os homens vão dizer como os deuses existem e com que se parecem, costumam errar feio em suas falsas presunções (hypolépseis). Erram, porque em vez de buscar o que seja o melhor e mais digno, acabam imaginando os imortais à semelhança dos próprios homens, com vontades, paixões, preocupações, juízos e até desejos e vícios – diferem apenas no poder excedente  e na ausência da morte. Os homens projetam seus valores e ideais sobre as fantasias que produzem dos deuses de modo que não examinam o que seja realmente o melhor e mais venturoso e que com direito e dignidade cabe a uma concepção  veneranda do sagrado. Além de não respeitar  a verdade dos próprios deuses, tais presunções provocam angústias atrozes e até mesmo atitudes descabidas e violentas. O peso do olhar divino sobre as ações humanas faz com que se esteja o tempo todo preocupado em agradar ou não desagradar os deuses, enquanto não se examinam realmente a virtude e a excelência das próprias ações. Responsabilizamos os deuses pelo que nos vem de bom ou de ruim, como se estivessem muito preocupados em nos recompensar ou castigar. Ficamos apreensivos com as torturas medonhas do Tártaro e esperamos a sorte de alcançar as ilhas dos bem aventurados. E queremos dobrar os deuses a nossas vontades com preces, oferendas e sacrifícios. Com tudo isso, abrimos mão de exercer nossa liberdade na responsabilidade das decisões e das ações.


O estudo da natureza tem como primeira missão e objetivo alcançar a verdadeira constituição do mundo, dos seus corpos, dos seus viventes, e dos viventes que reputamos mais excelentes. A teoria atomista nos apresenta o cosmo em sua autonomia e autarquia, que contém todas as forças para mover-se e jogar o jogo do vir-a-ser e do ir-de-ser com simplicidade e graça, sem precisar de nenhum maestro a conduzir a grande  sinfonia do real. Neste grande jogo os homens podem participar e atuar com responsabilidade, com a assunção de atitudes e valores, não são títeres dos deuses ou joguetes de um destino. Balizam-se os sábios e prudentes pela boa condução da vida, pela fuga das dores e pela busca de uma existência saudável e serena no prazer.


Para Epicuro os deuses são realmente o que há de melhor e mais excelente, de modo que podem ser os êmulos de nossas ações. Mas este ideal divino de vida feliz se projeta sobre o homem mais nobre  não como um exercício arbitrário de desejo, poder e vontade despótica, mas como a máxima serenidade, a mais imperturbável ataraxia. Os deuses, mais do que qualquer um, são imperturbáveis por nossos feitos, seja para agradá-los, seja para afrontá-los. Os mais excelentes viventes tem como mais ninguém aquilo que Nietzsche chamou de “pathos da distância”. Não precisamos temer os deuses, nem nos pautar por servi-los. Os deuses absolutamente não precisam em nada de nós. Principalmente, não devemos entrar em disputas encarniçadas e violentas, propiciar dores e sofrimentos, sacrificar vidas humanas em seus nomes. Os deuses não estão nem aí para nós.


O primeiro antídoto visa curar-nos de nossas projeções transcendentes, dos falsos valores que elegemos para imitar e obedecer. Deve curar-nos das angústias do além. O segundo antídoto visa fazer nos aquiescer no limite do que somos, em nossa condição de viventes mortais. Perturba-nos demais o além, mas também perturba-nos a ideia, a certeza, de que a partir de determinado instante não haverá mais além. Depois do temor ao sobrenatural  dos deuses, nada perturba mais nossa alma do que o medo da morte. Assim, a segunda missão da fisiologia é compreender o sentido simples e verdadeiro da morte e da mortalidade.






Por que tememos a morte? Supomos que seja algum tipo de dor ou sofrimento. No entanto, a fisiologia da vida nos mostra que toda dor ou sofrimento só se dá como percepção de algum sentido. Ora, o morto não sente absolutamente nada, de modo que não tem como sentir dor. O morto não sente dor, mas o vivo que teme a morte sofre a antecipação dessa dor imaginária. Não é a morte que nos aflige, mas o temor da morte, essa antecipação de um sofrimento ilusório, que nunca poderá ser sentido, quando de fato aderir a hora.  Sofremos, portanto a dor de uma mentira. Sofremos por puro engano e ignorância, mas sofremos. Quando realmente aprendemos o sentido do vazio não como a falta mas como o acabamento e a planificação da vida, então não teremos o medo da morte. Mas a evidência dessa verdade não é alcançada por um raciocínio frio: entender por que razões a morte não é um sofrimento é razoavelmente fácil, difícil porém é alcançar a atitude deste entendimento e não sucumbir em vida ao temor da morte quando os fatos da vida nos desafiam.  O sábio e o prudente não é alguém  que pode  seguir coerentemente  a dedução de um raciocínio, mas aquele que efetivamente consegue pautar sua vida pelo que sua mente alcança com clareza no pensamento. Aprender o destemor da morte é aprender a enfrentar cada perigo e cada obstáculo com a coragem e a determinação devidas. É também aprender a difícil lição do desapego: saber que a cada dia um dia se conquista e um dia se perde.


O temor da morte ainda traz, além da própria angústia com o nada, outras conseqüências também portadoras de outras aflições e vaidades: a ambição desmedida e a ganância, a ânsia de glória. A segunda componente do tetrafármaco mostra-nos como todos os bens são passageiros e que a vida  também é uma passagem do nada para coisa nenhuma. Não temer a morte é aprender a morrer a cada dia, ganhar a única riqueza exclusiva dos mortais: a experiência da passagem do tempo. A passagem que cronicamente a tudo corroi é, sem o temor da morte, transfigurada em passagem prazerosa da intensidade e da vertigem de viver.


Bebamos e comamos, pois amanhã morremos.


O terceiro remédio é administrado à alma para que esta seja boa protetora do corpo, é ainda uma droga filosófica porque a temperança nos usos do corpo é em primeiro lugar o resultado de um saber. O saber que o homem prudente conquista de alcançar e conservar a medida. O terceiro elemento nos fala  da experiência de otimizar o prazer. A maior quantidade, a melhor qualidade, e o mais longo usufruto do prazer cabem ao que se torna o senhor da medida. Para este é simples alcançar e fácil de obter o prazer. Não porque este sábio seja cheio de recursos ou aparelhado de poderes como um tirano, mas porque aprendeu a sorver a máxima delícia do simples e com pouco. Aprendeu a encontrar o gozo na circunstância que o rodeia, no que a generosa natureza lhe estendeu por graça.  O frescor de uma água cristalina no riacho ou no banho de chuva, o calor acolhedor de uma manhã ensolarada, a fruta madura no pé, o mel colhido que recompensa o esforço. O prazer, Epicuro o cultiva no jardim. Os prazeres supérfluos são os mais difíceis e não são os melhores. Todavia os demais prazeres não são para desprezar ou repudiar, nenhum prazer é em si mesmo ruim, mas o homem prudente e conhecedor da medida sabe calcular se o esforço  despendido é proporcional ao prazer alcançado; sabe ir até onde o corpo é capaz de comprazer-se e sabe parar  quando vê se aproximar a dor; sabe ponderar os que hoje são prazeres, mas amanhã podem fazer sofrer. A medida do prazer, mas este é um afeto pelo qual podemos ser totalmente senhores e responsáveis. O prazer mais intenso, no entanto, sequer precisamos cuidar de sua medida, nunca este prazer é excessivo, e ele é o que está mais disponível e só depende mesmo  de nossa disposição e caráter: é prazer da convivência entre amigos. Se a convivência ainda é a que entretem a prazerosa atividade da filosofia, então somos realmente bem-aventurados e vivemos entre eles.


“mas viverás como um deus entre os homens. Pois em nada se parece com um vivente mortal o homem que vive entre bens imortais”.


O quadrado terapêutico se fecha com uma sabedoria controladora acerca do sofrimento. O sofrimento ou é curto no tempo, ou curto na intensidade.  Para a experiência da dor, ministra-se o antídodo da paciência. O concurso do tempo faz passar a dor; assim quando temos a ciência da passagem do tempo, podemos aprender a ausentar-nos da dor. A dor caiu sobre nós nesse momento? Abstraiamo-nos do momento. O nosso pensamento é capaz de adiantar fim da dor na esperança do alívio, e a suportarmos sem desespero, se temos fé de que ela vai passar. O tempo aqui é o grande remédio e saber que o tempo tudo leva é um conforto no momento da dor. Além da expectativa do alívio, também se pode abstrair o momento do sofrimento pela lembrança do prazer. Quando a dor sobrevém e não temos o que fazer para evita-la, o pensamento pode refugiar-se em uma memória prazerosa; e lembrar de um prazer é revive-lo um pouco. Mas se a dor é pungente demais, tenhamos essa convicção: a dor muito intensa é curta, ou porque recobramos a saúde e o prazer rapidamente, ou porque logo morremos e, sem sensação, a morte é alívio para a dor excessiva e sem expectativa de cura. Mas se, por outro lado, o sofrimento se torna longo e crônico, a natureza dos sentidos se encarrega de enfraquecer a sensação, até o ponto de nos acostumarmos ao que antes era doído, até que a dor de todo dia vira um despercebido ruído de fundo.